Brasileira com doença grave que vive em Cascais luta por Justiça contra a Receita

Aposentada de 75 anos, com doença grave, ganhou processo contra a Receita Federal para não pagar imposto sobre o benefício, mas espera há anos pela suspensão da cobrança e pela devolução do que pagou.

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Pelo menos 4.500 aposentados brasileiros com doenças graves continuam pagando imposto de 25% sobre aposentadorias, apesar de a lei dizer que são isentos Manuel Roberto
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Uma brasileira aposentada de 75 anos, com severa doença oftalmológica que lhe impede de trabalhar. Ela, que mora em Portugal desde 2017 e pede para não ser identificada, enfrenta uma longa batalha por justiça fiscal. Diagnosticada com uma moléstia grave, tenta, há sete anos, reaver o que a Receita Federal do Brasil lhe cobra de Imposto de Renda (IR). Se vencer a disputa nos tribunais, pode beneficiar ao menos 4,5 mil brasileiros aposentados doentes que vivem no exterior e devem contribuir, neste ano, com cerca de R$ 61 milhões (10 milhões de euros) em tributos sobre seus benefícios.

Semanalmente, a aposentada envia e-mails para o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e para outros ministros do Palácio do Planalto, deputados, senadores e jornalistas. No mês passado, ela encaminhou uma mensagem ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em todos os e-mails, diz: “Peço que a Receita Federal me trate da mesma forma que trata os aposentados, portadores de doenças graves e que residem no Brasil”.

A luta da aposentada é para que a Receita Federal cumpra a decisão da 24ª Vara Federal, do Distrito Federal, que declarou ilegal a decisão do Fisco de aplicar IR sobre a aposentadoria dela. O argumento usa o texto da Lei nº 7.713 de 1988, que lhe isenta do tributo. No entanto, como residente no exterior, ela continua sendo tributada pelo Fisco a uma taxa de 25% sobre seus rendimentos, enquanto os aposentados e pensionistas portadores de moléstias graves e que residam no Brasil têm o direito de usufruir da isenção do IR para arcar com despesas de seus tratamentos.

O Governo Federal recusa-se a cumprir decisão da 24ª Vara — Juizado Especial Federal (DF), de 2019, que determinou o fim da cobrança do Imposto de Renda sobre as aposentadorias e a devolução do que já foi cobrado. O Instituto Nacional de Previdência Social (INSS), em documentos oficiais aos quais o PÚBLICO Brasil teve acesso, admite que a Receita vem cometendo irregularidade em algumas cobranças. E mais: o Fisco brasileiro admite, também em documentos oficiais, que essa tributação ajuda a evitar que brasileiros busquem residir no exterior, para escapar ao pagamento de impostos no Brasil.

A Lei nº 7.713, de 1988, garante a isenção de Imposto de Renda sobre aposentadorias e pensões para portadores de moléstias graves. O objetivo da legislação é aliviar a carga financeira dessas pessoas, considerando os elevados custos médicos associados ao tratamento das doenças. Entre as listadas pela legislação estão: neoplasia maligna (câncer), tuberculose ativa, alienação mental, esclerose múltipla, cegueira, hanseníase, cardiopatia grave, doença de Parkinson, paralisia irreversível e incapacitante, entre outras.

Essa isenção de impostos não está condicionada à manifestação dos sintomas. Ou seja, mesmo que o paciente esteja em remissão ou sem sinais visíveis da doença, o direito ao não pagamento de tributos é mantido. Essa garantia foi reafirmada em decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Para que o direito à isenção seja efetivado, o aposentado ou pensionista deve apresentar um laudo médico emitido por uma unidade oficial de saúde (federal, estadual ou municipal) à fonte pagadora, que então deixará de reter o imposto.

Mariana Garcia Cunha, Juíza Federal Substituta da 24ª Vara Federal, escreveu: “Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE O PEDIDO, nos termos do art. 487, I, do CPC, para: a) declarar a isenção definitiva de Imposto de Renda sobre a aposentadoria da parte autora, enquanto vigente o texto do artigo 6º, XIV, da Lei 7.713/98 e permanecer a doença; b) condenar à União a devolução dos valores retidos indevidamente entre 10/2013 a 12/2016 (por não ser devida a incidência de IR para residentes no exterior na alíquota de 25%) e a partir de 23/12/2016 (laudo médico que reconheceu a cegueira monocular). Os valores a pagar devem ser corrigidos pela SELIC (taxa básica de juros) na forma do Manual de Cálculos da Justiça Federal”. Mas, passados cinco anos, a aposentada só conseguiu reduzir a alíquota de 25% para 22,5%, e ainda espera pela devolução do dinheiro.

Decisão da juíza Mariana Garcia Cunha determina o fim da cobrança do IR e a devolução do tributo desde 2017, mas a Receita Federal não cumpre a ordem judicial

INSS aponta irregularidades

A situação da aposentada que mora em Cascais, no entanto, não é um caso isolado entre brasileiros que vivem em Portugal. Em 2016, o Instituto Nacional de Previdência Social (INSS) admitiu em e-mail, ao qual o PÚBLICO Brasil teve acesso, a ilegalidade da decisão da Receita em tributar um brasileiro, que também vive em Portugal, e que recebia auxílio-doença. Mas, por determinação da própria Receita, o benefício passou a pagar de 25% de imposto. “Há de se destacar que o inciso XVII do artigo 39 do Regulamento do Imposto de Renda aprovado pelo Decreto n° 3000/1999 trata como rendimento isento ou não tributável o auxílio-doença”, escreveu a funcionária do INSS no e-mail que consta do processo da aposentada.

Fica evidente que a Receita Federal, mesmo ciente da ausência de isonomia, vem aplicando a tributação a aposentados no exterior, quando os portadores de moléstias graves deveriam ser isentos conforme a legislação brasileira. A justificativa, dada pela Receita para manter a tributação, é que a decisão tem eficácia no combate ao planejamento tributário — ou seja, a tentativa de evitar que brasileiros busquem residir no exterior para escapar ao pagamento de impostos no Brasil. Porém, essa prática tem causado prejuízos a aposentados que enfrentam condições de saúde severas.

A aposentada de Cascais não está sozinha em sua luta. Em resposta ao Ofício nº 10/2022/CAE/SF, da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal, encaminhado ao ministro da Fazenda, o qual solicita informações sobre o impacto financeiro do PL nº 1.253/2019, que prevê a extensão da isenção do IRPF sobre rendimentos de aposentadoria e pensão aos portadores de moléstias graves residentes no exterior, a própria Receita escreveu: “O projeto de lei em análise (...) visa oferecer um tratamento tributário igualitário a contribuintes que se encontram em situações equivalentes, exceto pela sua localização espacial”.

O auditor fiscal Roberto Naime Ribeiro vai ainda mais longe, ao admitir outras razões para manter a cobrança: “O fato de as fontes pagadoras, por não receberem a notificação de seus beneficiários, tratarem não-residentes como residentes é uma fragilidade no sistema de arrecadação que é, em parte, mitigada por meio da tributação das remessas dos recursos recebidos no Brasil e encaminhados ao exterior, que, via de regra, são tributados à alíquota de 25%. Entretanto, por serem diversas as hipóteses de incidência, inclusive de outros tributos além do Imposto de Renda, seria uma desvirtuação do modelo previsto pelo art. 7º da Lei 9.779/1999.

Ele acrescenta: “Ademais, as reduções de alíquotas em casos de despesas em viagens internacionais, e até mesmo isenções no caso de remessas para fins educacionais e despesas médico-hospitalares, prevista na Lei 13.315/2016, bem como a existência de acordos tributários e previdenciários com outros países, permitiria uma abertura para o planejamento tributário e até mesmo a possibilidade de gozar de benefícios não permitidos pela lei vigente a um contribuinte que tenha passado à condição de não-residente, ainda que não fosse essa a sua vontade”.

Na resposta à Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal, o auditor apresenta projeções sobre os impactos dessa isonomia. Estima-se que aproximadamente 4.500 brasileiros aposentados que vivem fora do Brasil enfrentem o mesmo problema, sendo tributados pela Receita Federal, apesar de suas condições de saúde os enquadrarem nos critérios de isenção de IR vigentes no Brasil. Esses aposentados, que trabalharam por décadas no Brasil, onde contribuíram para o sistema público de previdência geral - muitos dos quais residem em Portugal atualmente - têm seus direitos à isenção ignorados e continuam a pagar 25% de imposto sobre seus rendimentos de aposentadoria.

A Receita Federal argumenta que a aprovação desse PL causaria uma perda significativa na arrecadação de impostos. Mas, segundo estimativas da própria Receita, o impacto financeiro seria de R$ 60,97 milhões (10 milhões de euros) em 2024 e de R$ 63,45 milhões (10,3 milhões de euros) em 2025. Muito pouco, perto da arrecadação anual da Receita, da ordem de R$ 1 trilhão (166 bilhões de euros ou 166 mil milhões de euros) para este ano. Ou seja, a isenção proporcionaria justiça a um grupo de aposentados que enfrentam sérios problemas de saúde.

Esperança no Congresso

Mesmo em face de laudos médicos oficiais, como os da aposentada de Cascais, a Receita continua a tributar proventos, argumentando que a residência no exterior é o fator determinante para a aplicação da alíquota. Esses casos refletem a urgência de mudanças legislativas. O Projeto de Lei 1.253/2019, de autoria da senadora Mara Gabrilli (PSDB/SP), está em tramitação no Senado há cinco anos.

O PL busca isentar do IR os aposentados brasileiros residentes no exterior que sejam portadores de moléstias graves, oferecendo a eles o mesmo tratamento fiscal que já é garantido aos residentes no Brasil. O projeto dorme em alguma gaveta do Senado Federal. Se aprovado, o PL beneficiaria milhares de brasileiros, corrigindo a injustiça fiscal que vem sendo imposta desde 2016, quando a Receita começou a aplicar essa tributação em massa.

A luta da aposentada de Cascais também revela problemas mais profundos na maneira como o sistema de arrecadação da Receita Federal lida com aposentados no exterior. A falta de comunicação eficaz entre as fontes pagadoras e os aposentados residentes no exterior resulta em uma tributação muitas vezes automática e injusta.

Muitos aposentados não informam a mudança definitiva para o exterior e acabam escapando das alíquotas mais elevadas. Já os que seguem a legislação e informam as autoridades fiscais a respeito dessa mudança acabam sendo tratados de forma desigual. Esse problema é agravado pela dificuldade de os aposentados deduzirem despesas médicas, algo que deveria ser permitido para aqueles que enfrentam tratamentos de alto custo relacionados a suas moléstias graves. No Brasil, essas deduções são aplicáveis, mas os aposentados no exterior enfrentam obstáculos na hora do reconhecimento desses gastos por parte da Receita.

Falta de isonomia

Luiz Gustavo Penner, advogado e sócio de CPPB Law, explica que ao impor a tributação de aposentados portadores de doenças graves residentes no exterior, o governo brasileiro fere a isonomia constitucional. “A impressão que fica, portanto, é a intenção de prejudicar, deliberadamente, cidadãos brasileiros que decidem deixar o país na altura da vida em que mais precisam do apoio do Estado, depois de décadas servindo ao Brasil. É como se fosse uma espécie de punição, aplicada onde é mais doloroso: no bolso”, critica Penner.

O advogado aponta que a própria Receita, no parecer que enviou à CAE do Senado, diz que a aprovação do Projeto de Lei poderá incentivar a emigração de contribuintes brasileiros, com impactos em outros setores da economia nacional, já que os recursos dos aposentados passarão a ser gastos em outros países. “Há aqui uma declaração expressa da intenção do governo de utilizar o mecanismo tributário para garantir que os recursos privados dos cidadãos sejam gastos no próprio país e não no exterior”, afirma o advogado.

Penner aponta uma boa notícia para a aposentada de Cascais. Em outubro, o Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal decretou o fim da aplicação da alíquota fixa de 25% de Imposto de Renda para todos os aposentados que vivem fora do Brasil, independentemente do valor de seus rendimentos. Ou seja, ao invés de se aplicar a taxa progressiva (direito de aposentados que vivem no Brasil), aplica-se essa alíquota fixa, o que acaba por prejudicar aposentados que ganham menos.

Em seu voto, o ministro Alexandre de Moraes usou um argumento bastante interessante: ele lembrou que os brasileiros que residem no exterior, apesar de sujeitos ao Imposto de Renda, sequer utilizam os serviços públicos que serão financiados pelos valores decorrentes da tributação. Isso mostra a dimensão da discussão e da necessidade de justiça fiscal.

Voto do ministro Dias Toffoli, relator do processo sobre tributação de brasileiros no exterior

Voto do ministro Alexandre de Moraes, do STF, sobre tributação de aposentados brasileiros no exterior

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