Depois de décadas de amor e ódio com o mercado financeiro, a paixão pelo artesanato

Foram quase três décadas em cargos importantes em bancos, mas a capixaba Maria Cristina Vervloet se rendeu à arte popular brasileira, que tem levado pelo mundo. Porém, ainda é um trabalho solitário.

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Maria Cristina Vervloet montou a empresa Caboco em Portugal para comercializar peças do artesanato brasileiro Vicente Nunes
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A capixaba Maria Cristina Vervloet, 66 anos, passou boa parte da vida metida em números, decidindo se alguém poderia tomar um empréstimo ou protegendo o patrimônio da clientela dos bancos para os quais trabalhou. Como ela mesmo diz, nesse período, alimentou uma relação de amor e ódio com o mercado financeiro. “Amava o que fazia, mas vivia planejando como largar aquilo”, conta. Até que, em 2017, tomou a decisão de romper os laços que haviam começado em 1980, quando trocou o Espírito Santo pelo Rio de Janeiro. “Concorri a uma vaga no Chase Manhattan Bank, fui aprovada e ali começou uma longa caminhada”, afirma.

Sete anos depois dessa libertação, ainda que ela diga que o mercado financeiro não saiu por completo dela, Maria Cristina está totalmente arrebatada por outra paixão: os artesanatos brasileiros, que ela, com todo esmero, tem levado para o mundo a partir de Portugal. “São verdadeiras obras de arte quase desconhecidas no Brasil e totalmente fora do radar dos compradores globais”, frisa. Para mudar esse quadro, ela montou, com o sócio Marco Pulcherio Saad, especialista em arte popular brasileira, a Caboco, uma empresa que compra peças no Brasil e as exporta para Portugal, de onde são despachadas para vários países.

“Foi necessário um profundo aprendizado”, destaca Maria Cristina. A ideia de criar a Caboco surgiu no início de 2020, mas logo foi atropelada pela pandemia do novo coronavírus. A retomada do projeto só ocorreu em 2022, quando, efetivamente, surgiu a empresa tão desejada. Depois da longa espera, a meta era transportar as obras dos artesãos para Portugal o mais rapidamente possível. A primeira carga deveria ter chegado a um porto lusitano em maio daquele ano, mas, ante a burocracia e o desconhecimento das regras, só desembarcou em outubro. “Com esse atraso, perdemos muitos negócios. Mas todos os erros que cometemos nos ensinaram bastante”, assinala.

O importante, complementa a ex-executiva do mercado financeiro, é que, finalmente, a arte popular brasileira, com toda a sua diversidade, está dando as caras e ocupando espaço. São várias as lojas em Portugal onde se pode encontrar peças como as de Aberaldo, formado pela escola de Seu Francisco, em Alagoas, que tinha a capacidade de pegar um galho de uma árvore na rua e transformá-lo em uma obra de arte. “Além das lojas, estamos trabalhando com arquitetos para que, nos projetos que desenvolvam, possam incluir as nossas peças”, frisa ela, listando as três coisas que mais gosta na vida: arte, cozinhar e viajar.

Emprego e renda

Maria Cristina conta que, mesmo tomada pelo frenesi do sistema financeiro, sempre teve um olhar muito aguçado para as artes. “Nas minhas viagens de férias, seja para que lugar fosse, assim que chegava, o primeiro lugar que ia conhecer era o mercado local, para experimentar as comidas e descobrir o artesanato. Como também sou apaixonada por arte contemporânea, todos os anos comprava uma obra, o que me permitiu construir um bom acervo”, ressalta. “Meus amigos, vivem me pedindo dicas sobre peças e quadros, mas nunca estudei nada. Realmente, foi algo de que sempre gostei muito”, emenda.

Peça indígena Waura Vicente Nunes
Obra de Francisco Garciano, do Cariri Vicente Nunes
Obra de Francisco Garciano, do Cariri Vicente Nunes
Obra de Antônio Rodrigues Vicente Nunes
Obra de Antônio Rodrigues Vicente Nunes
Obra de Everaldo Vicente Nunes
Obra de Maqueson, do Acre Vicente Nunes
Obra de Marco de Nuca Vicente Nunes
Peça de Sil da Capela, de Alagoas Vicente Nunes
Obra de Aberaldo, da Ilha de Ferro
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Peça indígena Waura Vicente Nunes

Para formar o estoque das peças que mantém em um galpão em Odivelas, perto de Lisboa, Maria Cristina percorreu boa parte do Brasil ao lado do sócio. “Tivemos uma aula sobre esse mundo do artesanato. Descobrimos como é possível gerar riqueza com os artesãos. Há áreas no Nordeste em que o artesanato juntou tantos artistas bons que elas se transformaram em centros turísticos. Hotéis chegaram, restaurantes abriram as portas, outras pessoas empreenderam. O dinheiro passou a circular, empregos foram criados, mantendo as pessoas naquelas regiões. Isso é incrível”, descreve.

Para a dona da Caboco, o artesanato brasileiro tem tudo para ficar conhecido no mundo, da mesma forma que o africano, que hoje é uma referência. “Creio que temos uma vantagem, pois as nossas peças são mais alegres, mais coloridas, temos arte religiosa e arte indígena. São tantos artesãos maravilhosos, que estou apaixonada por esse trabalho”, diz. Ela assegura que os preços das peças brasileiras, todas únicas, são acessíveis, partindo de 200 euros (R$ 1.270), já incluídos todos os custos de transportes. “A peça mais cara que vendemos custou 2,2 mil euros (R$ 14 mil), uma cadeira enorme, toda trabalhada”, afirma.

A ex-executiva do mercado financeiro reconhece que seu trabalho ainda é solitário e que falta uma política de Estado no Brasil para difundir a arte popular mundo afora. “Temos feito o nosso trabalho, participando de feiras na Inglaterra, na Alemanha, na Itália, em vários outros lugares, mostrando o que produzimos de melhor. Mas é pouco, dada à qualidade dos nossos artesãos e do quanto esse mercado pode agregar de valor ao país”, frisa. No entender dela, é preciso uma visão comercial que facilite o acesso ao artesanato brasileiro, para que, depois das feiras, as obras possam ser vendidas e não saírem das exposições e serem relegadas aos depósitos. “Há muito ainda por ser feito”, reconhece.

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