Pudemos delegar trabalho a máquinas e até imaginámos delegar nelas a exploração do homem pelo homem, como se não fosse assim adicionada mais uma alienação às que Marx apontou. Os ludistas destruíram os teares, mas não imaginavam o que viria aí, como o fez Kurt Vonnegut Jr. na sua primeira novela, publicada em Portugal na colecção Argonauta com o título Utopia 14 (no original Player Piano), e presença provável em estantes de muitas casas de férias. Nela, imaginou-se um mundo social dividido entre os que ainda trabalhavam, e cujo trabalho era encontrar formas de o automatizar, e todos os outros, que, cada vez mais, apesar de bem alimentados e entretidos, não encontravam propósito de vida.
A história acaba mal. Faz falta participar e ser parte. Num texto de 1928, com o título Possibilidades económicas para os nossos netos, o bom do John Maynard Keynes propunha uma conta justa: “Três horas por dia são suficientes para satisfazer o velho Adão da maioria de nós!”
Agora, delegamos a inteligência a máquinas. Curiosamente, é mais fácil delegar a inteligência do raciocínio adulto do que a percepção de uma criança. É o que na inteligência artificial se chama paradoxo de Moravec. Mas as máquinas vão chegando lá, como se demonstrassem uma lei: tudo pode ser computado. Também delegamos as decisões difíceis em algoritmos que escolhem quem fica com o emprego, ou sem ele, se um carro tolhe a vida a cinco ou apenas a um. Delegamos a condução da atenção ao frenesim dos estímulos. E delegamos gostos e vontades a uma entidade fantasmática a que vamos chamando “algoritmo” e que mais parece uma segunda mão invisível, até na sua aparente espontaneidade.
Quando delegar significa uma espécie de jogo de máscaras que, para eficiência da decisão, dispensa a comparência, e aliena a responsabilidade perante acções que não deixam de ter todas as consequências, arriscamos a hipocrisia.
Mas há um paradoxo: delegar também pode ser um modo de comparência. Como quem delega por confiar noutros e lhes entregar a responsabilidade de uma acção ou representação. De novo, podem comandar razões de eficiência, qualquer gestor dirá para aprender a delegar, mas há um significado mais profundo: chamar outros ao fazer partilhado da responsabilidade.
Qual é a delegação boa? A da presença por inteiro. Mas, quase todos os dias, notícias da guerra falam de drones que alcançam casas de pessoas e matam em ausência. Não delegar a morte deveria instruir os limites de toda a delegação e das suas tecnologias. As máquinas podem matar por nós, mas não podem morrer por nós.