Nas ilhas Desertas, à espera do “grande bailado” dos lobos-marinhos
No arquipélago da Madeira vive a única colónia portuguesa de lobos-marinhos. Um realizador americano fez um pequeno documentário sobre esta espécie em risco de extinção. Fomos com ele à sua procura.
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A caminho das Desertas, de costas para uma ilha da Madeira cada vez mais pequena, a água do oceano Atlântico fica estranhamente próxima. As gotas do mar molham os passageiros do iate, o azul da água salgada adensa-se, e todo o volume do mundo submarino parece transparecer à superfície, anunciando um universo desconhecido. Mas Andy Mann conhece um pouco desse mundo, e fala das suas presenças, como a dos lobos-marinhos, que semanas antes teve a oportunidade de ver e filmar.
“Tivemos muita sorte. Durante cerca de 45 minutos eles não se aproximaram da câmara, mas finalmente ficaram suficientemente curiosos e confortáveis comigo”, diz ao PÚBLICO o realizador de documentários de natureza norte-americano, fotógrafo da National Geographic, que tem usado o seu trabalho para ajudar a criar reservas marinhas, incluindo nos Açores e nas Selvagens (ver entrevista). “Fomos capazes de obter algumas imagens e os últimos 30 minutos de mergulho foram dos melhores mergulhos da minha vida”, admite, numa conversa durante a viagem no iate.
Tal como o grupo de jornalistas que vai visitar as ilhas, na esperança de conhecer a pequena colónia de lobos-marinhos que lá existe, Andy Mann está também ali a convite do hotel Reid’s Palace, do grupo Belmond. O lobo-marinho, também conhecido por foca-monge-do-mediterrâneo (Monachus monachus), é uma das mais raras e ameaçadas espécies de foca no mundo e o hotel decidiu ajudar na sua conservação.
Nesse contexto, o norte-americano recebeu uma encomenda do hotel para fazer um pequeno documentário sobre aquela colónia, que não tem mais de 30 indivíduos. Mas o realizador teve sorte durante as curtas filmagens do documentário e conseguiu captar imagens bonitas de dois lobos-marinhos na água.
“Estavam a brincar e a dançar à volta e a fazer uma espécie de pirueta, como se fosse um grande bailado”, descreve-nos Andy Mann. “Eles são muito maiores do que parecem em terra, onde podemos vê-los a dormir. E são maljeitosos, não andam muito bem em terra. Mas assim que entram na água, passam a movimentar-se sem esforço. Estamos a ver um animal que tem por trás dezenas de milhões de anos de aperfeiçoamento evolutivo a dançar na água e isso recorda-nos realmente quão bela e frágil esta espécie é.”
A história de uma fragmentação
Ao todo, haverá entre 444 a 600 indivíduos adultos de Monachus monachus, de acordo com a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, sigla em inglês), que em 2023 actualizou o estatuto de conservação desta espécie de Em Perigo para Vulnerável. Embora o lobo-marinho continue em risco de extinção e com um baixo número de indivíduos, a melhoria do estatuto atribuído pela IUCN deve-se à recuperação das várias populações do lobo-marinho na Grécia, na Turquia, na Mauritânia e também nas Desertas.
Mas a espécie está ainda muito longe de habitar o seu território nativo, que ia da Gâmbia a Portugal continental, das Canárias até à costa russa no mar Negro, e incluía a ilha da Madeira, de acordo com a IUCN. A diminuição do habitat e a fragmentação das populações deveram-se à caça comercial histórica e à perseguição daqueles animais, que dizimou muitas colónias e diminuiu a sua diversidade genética. Essa tendência prolongou-se até ao final do século XX, quando o lobo-marinho foi finalmente protegido.
Em 1988, quando a Madeira começou os esforços de conservação da população das Desertas, que em 1990 passam a ser uma área protegida, existiam entre seis e oito indivíduos naquela colónia. Paulatinamente a população tem vindo a crescer, com um trabalho de monitorização feito pelos técnicos do Instituto das Florestas e Conservação da Natureza (IFCN) da Madeira que continua até hoje.
Neste momento, o IFCN está a terminar um projecto de três anos e meio chamado Vigilância do Estado de Conservação do Lobo-marinho no Arquipélago da Madeira (VECLAM), que custou 250.000 euros e foi apoiado pelo consórcio de fundações Monk Seal Alliance, que tem como objectivo a recuperação dos lobos-marinhos e dos seus habitats, e financiou o projecto com 150.000 euros.
Um dos objectivos do VECLAM foi mapear as grutas de Porto Santo e das Selvagens para avaliar se têm condições para serem colonizadas pelo mamífero, que passa muito tempo na água, mas vem à costa para descansar e se reproduzir. Essa avaliação já tinha sido feita para as três ilhas das Desertas e para a ilha da Madeira e enquadra-se no objectivo de longo prazo do IFCN de “restabelecer a distribuição original desta espécie no Atlântico”, adianta a instituição num e-mail enviado ao PÚBLICO.
Outro objectivo foi colocar sistemas de vigilância em grutas que captam imagens horárias ou de meia em meia hora. “Obtemos informação sobre o uso do habitat, taxas de natalidade, de mortalidade e de sobrevivência, fêmeas reprodutoras, parâmetros reprodutivos, maturidade dos indivíduos, entre outros”, refere a instituição.
Corrigir as coisas
É no contexto do VECLAM e num acordo com o IFCN que ocorreu o apoio do Reid’s Palace. O hotel contribuiu com perto de 4000 euros em equipamento: uma máquina fotográfica compacta, um tripé, sistemas de armazenamento externo e uma pulseira GPS para um lobo-marinho.
“Espero que este apoio seja um veículo comunicacional para mostrar a importância da protecção do ambiente”, disse ao PÚBLICO Ciriaco Campus, director-geral do Reid’s Palace, justificando a aposta do hotel na conservação da foca-monge-do-mediterrâneo. Há anos que o hotel queria abraçar aquela causa, principalmente num mundo em que a pegada humana está a destruir ecossistemas e a provocar uma crise climática. “Queixamo-nos que não chove ou chove demais. Mas fomos nós que criámos isto, portanto a nossa responsabilidade agora é tentar corrigir um pouco as coisas”, explicou o dirigente italiano, dois dias antes da viagem às Desertas, no luxuriante jardim à beira-mar do famoso hotel, quando se deu o arranque da Ocean Week.
Nesse evento foi apresentado o documentário de Andy Mann, feito durante dois dias em Setembro, e foram expostas oito imagens captadas pelo realizador. Metade é de lobos-marinhos. Numa delas observa-se o momento da dança referida pelo realizador, quando um macho envolve uma fêmea com as suas barbatanas. O norte-americano deu o nome de “Abraço” à imagem. “Esta é a ligação. Este é o momento que dura para sempre”, explica no documentário o norte-americano, que procura que os seus trabalhos permitam criar uma ligação entre a sua audiência e o oceano, que quer ajudar a proteger.
Além dos lobos-marinhos há uma imagem com cetáceos, outra com um tubarão rodeado por peixes, uma de uma medusa portentosa e, finalmente, uma imagem da Deserta Grande vista de cima, a maior das três ilhas das Desertas, onde mora a população de lobos-marinhos.
No programa da Ocean Week havia a possibilidade de hóspedes do hotel visitarem a ilha e de tentarem observar a população daqueles mamíferos num iate acompanhados por Andy Mann, numa viagem em que 20% das receitas dos bilhetes revertiam para o projecto VECLAM. Ao todo, seis hóspedes agarraram a oportunidade e o projecto ganhou mais 720 euros. “Iremos manter este apoio, direccionando 20% do valor de cada viagem às Desertas reservada pelos nossos hóspedes para o projecto”, assegurou o gabinete de comunicação do hotel ao PÚBLICO.
Desérticas e geológicas
A viagem da Marina da Quinta do Lorde, na ponta leste da Madeira, até às Desertas pode levar cerca de uma hora num iate. O perfil das três ilhas é visível à distância, a partir da costa Sudeste da Madeira: a Deserta Grande, com os seus 11,7 quilómetros de comprimento e altura máxima de 479 metros, sobressai entre o Ilhéu Chão, que fica à sua esquerda e é a mais pequena das três, e o Bugio, à sua direita, mais escarpado.
As Desertas têm uma origem vulcânica e surgiram há cerca de 3,5 milhões de anos. É justamente o seu carácter geológico que causa impacto ao visitante que se aproxima. Principalmente a Deserta Grande, com as suas arribas rochosas implacáveis e um sem fim de desenhos formados pelas rochas: estratos mais horizontais de cor vermelha, regiões mais castanhas, diques verticais cinzentos, zonas esburacadas e com formações que parecem ter sido feitas por Dali, como Andy Mann sugere.
São formas que contam uma história de vulcanismo e de tempo apenas decifrável por especialistas. Mas deixam em quem observa um sabor de um planeta mais inicial e inóspito, quase esquecido pela vida, que nos remete para palavras e paisagens distantes: lunar, marciana…
Entretanto, o iate aproxima-se de uma fajã, nome dado aos avanços de terra formados por detritos que caíram durante um deslizamento de terra. Neste caso, um grande deslizamento de terra no fim do século XIX, que deixou uma enorme cova na parede da ilha. É nesta fajã que foram construídas as pequenas casas de Madeira, instalações que dão apoio ao corpo de vigilantes de natureza, que vigiam as ilhas para manter a Reserva Natural das Ilhas Desertas protegida e também ajudam na conservação da natureza.
No documentário de Andy Mann, este espaço também é importante, já que parte da história contada é também sobre os técnicos que monitorizam os lobos-marinhos, como Cláudia Ribeiro, bióloga marinha do IFCN. “A maioria das histórias sobre os oceanos são histórias sobre pessoas”, diz o realizador, justificando a importância que dá ao trabalho de Cláudia Ribeiro e dos seus colegas no seu documentário. “Eu queria dar às pessoas uma janela para o que é realizar este trabalho [de monitorização].”
Uma gruta para repousar
O iate fica a algumas dezenas de metros da fajã, que é o único espaço visitável da Deserta Grande. Quando filmou o documentário, o realizador teve a rara oportunidade de passar uma noite na ilha. “O céu é espantoso, as estrelas são espantosas”, comenta.
Um pequeno bote leva-nos até lá. Na ilha está também uma população de turistas que veio num catamarã que chegara antes, esvaziando o imaginário de uma ilha deserta. Há um percurso a fazer dentro de um trilho, onde se pode visitar uma sala expositiva numa das casas, caminhar entre grandes pedregulhos e dar de caras com uma pequena cabra, que vai mastigando as plantas que se encontram no terreno. Andy Mann explica que é possível encontrar pendurados nas falésias alguns elementos da população centenária de cabras da Deserta Grande, levadas para lá pelos portugueses.
Depois, voltamos ao iate no meio de uma chuva breve. Há tempo para um almoço e de seguida dois vigilantes levam-nos num barco mais pequeno a uma visita a duas grutas ali perto. Há uma pequena esperança de ver os lobos-marinhos, mas a cavidade onde eles normalmente estão fica mais longe e não é visitável, segundo o IFCN.
“Esta gruta é usada para repouso, para dar à luz e alimentar as crias nos seus primeiros dias de vida, e para socialização”, explica o instituto, no e-mail. “Apenas a equipa do VECLAM e os vigilantes da natureza podem lá ir para fazer a manutenção das câmaras e só quando se verificam todas as condições adequadas, o que inclui a ausência de animais.”
A preocupação com a segurança do lobo-marinho é proporcional ao risco inerente a uma população tão pequena, frágil geneticamente, que pode ser dizimada por uma qualquer doença. Mas as restrições limitam a possibilidade de um encontro.
Assim, na visita às grutas vêem-se bastantes caranguejos nas rochas. No mar, encontram-se alguns peixes e de vez em quando há uma ave que voa paralela à falésia. Mas os lobos-marinhos não aparecem em lado nenhum. Pedro Mendes Gomes, capitão do Luxury Charter Madeira, o iate onde viajamos, diz que já viu várias vezes leões-marinhos ali. Só que o tempo passa, a sorte não surge e é preciso regressar.
O trajecto de volta à Madeira é mais calado, rápido, e envolto numa certa desilusão, com as Desertas a ficarem para trás. Mas já perto da marina, Pedro Mendes Gomes resolve levar o iate para as zonas escarpadas da Ponta de São Lourenço, onde por vezes também se avistam as focas, e a esperança renasce.
O iate desliza lentamente numa espera compenetrada, todas as atenções se concentram na superfície de água à volta, até que o capitão grita e aponta: “Um lobo-marinho!” O momento é breve, vê-se o corpo de um mamífero deslizar, girando sobre si mesmo, e submergir. Não é mais do que um vislumbre da dança que Andy Mann descreve, tão rápida que nem sequer permite tirar uma fotografia. Num instante, o animal desaparece. Fica apenas uma memória, um relâmpago. O iate soçobra mais uns minutos, mas o lobo-marinho não volta a aparecer. O oceano fecha-se de novo no seu mistério e a viagem termina ali.
O PÚBLICO viajou a convite do hotel Reid’s Palace.