Eliane Brum (n. 1966) é devota do jornalismo, mas não cresceu a sonhar com tal ofício. O jornal que o pai assinava, o Correio do Povo, parecia-lhe “muito chato”. O que ela gostava mesmo de ler era livros.
Encontrou forma de escapar à actualidade. Interessa-se mais pelo que não é notícia, pelos “desacontecimentos”. Define-se, sobretudo, como uma “escutadeira”. Gosta de escutar “os invisíveis, os sem voz, os esquecidos, os proscritos, os não contados, aqueles à margem da narrativa”.
Forjou um estilo singular, atento aos detalhes, inquieto com as injustiças e as desigualdades do mundo, mas generoso no modo de olhar os outros. Colunista no diário espanhol El País, em 2022 co-fundou a plataforma Sumaúma – jornalismo do centro do mundo, de que é directora.
Depois de tantos anos a escutar os “desimportantes” da sua espécie, Eliane Brum está decidida a encontrar forma de escutar outras espécies. Na Amazónia, procura escutar “as pessoas-plantas, as pessoas-fungos, as pessoas-animais”, contar histórias sob a sua perspectiva.
Este artigo resulta de uma conversa em Lisboa. Eliane Brum está a fazer uma residência no Centre de Cultura Contemporània de Barcelona (CCCB) e veio a Portugal lançar o livro Meus Desacontecimentos.
Paralisia consequente
Eu movo-me a partir de paralisias. Eu posso contar a minha história pelos momentos em que paralisei.
Em 2010, saí da [revista] Época. A minha filha estava já formada – engravidei aos 15 anos. Decidi que podia viver com pouco.
Queria tentar uma vida diferente. Queria reapropriar-me do tempo. E queria escrever ficção. Escrevi o meu primeiro e único romance – Uma Duas.
Quando acabei de escrever o romance, participei no livro dos 40 anos dos Médicos sem Fronteiras – Dignidade. Convidaram diferentes escritores de diferentes partes do mundo. Fui para uma região da Bolívia que tem uma das mais altas prevalências de doença de chagas do mundo.
O barbeiro, o insecto vector da doença de chagas, estava muito presente. Quase todos tinham chagas. Eu acompanhei uma família e fiquei muito próxima de uma menina chamada Sónia. Quando me fui despedir dela, ela pegou no meu braço e disse: “Não me deixe morrer.”
É claro que, sendo jornalista há tanto tempo, eu já me tinha deparado muitas vezes com o risco da morte, mas nunca ninguém me tinha pegado assim. Eu disse para a Sónia o que eu digo sempre: “Eu vou contar a tua história para o mundo.”
Eu sabia que contar a história dela não ia fazer diferença na vida dela. O mundo não está nem aí para meninas como Sónia. Doenças como a de chagas são negligenciadas. Não têm vacina, não têm medicamentos eficientes, não têm cura, porque são doenças de pessoas pobres.
Voltei para o Brasil e fiquei duas semanas sem conseguir escrever. Emagreci sete quilos. Escrever sempre fez sentido na minha vida. Foi onde elaborei todas as minhas dores. É onde dou lugar às coisas. Se escrever não ia salvar a vida de Sónia, porque é que eu ia escrever?
Foi aí que entendi algo que é muito importante para mim até hoje. Poder pouco é diferente de poder nada. Para poder voltar a escrever, precisei de resgatar a minha história com as palavras. Escrevi o livro Meus Desacontecimentos – A história da minha vida com as palavras.
Escrever para não morrer
Comecei por escrever poesias ruins aos nove anos de idade. Sentia tanta melancolia que olhei pela janela e pensei: “Porque não salto?” Escrevi em vez de saltar. E desde então nunca mais parei de escrever a não ser nessas paralisias – já tive outra, é outro livro. A escrita é do corpo. Não separo corpo e mente. A escrita sou toda eu. Só sei ser por escrito.
Escrever para não matar
Desde pequena que tenho muita raiva. Faço uma diferença entre raiva e ódio. O ódio fecha, a raiva move. Eu também sou movida pelo amor, mas muito pela raiva. A raiva com esses horrores todos [que se passam no mundo].
Jornalismo sobre os invisíveis
Acho que isso vem da minha infância, especialmente do meu pai. O meu pai foi a primeira pessoa da família dele a aprender a ler e a escrever e criou com outras pessoas uma universidade comunitária em Ijuí. Eu e os meus irmãos não fomos criados para sermos indivíduos bem-sucedidos, mas para sermos úteis para a nossa comunidade.
Interessei-me sempre mais pela vida das pessoas supostamente comuns. Não foi fácil abrir esse caminho, mas, como trazia boas histórias, fui conseguindo. Essa busca pelo extraordinário nas vidas supostamente comuns virou uma coluna [e deu origem aos livros A Vida Que Ninguém Vê e O Olho da Rua – Uma repórter em busca da literatura da vida real].
Saber escutar
Sempre gostei de ouvir histórias. Sempre tive esse lugar de jornalista, desde pequenina. Ficava sentada num cantinho, fora da cena, a ouvir as histórias dos meus parentes agricultores, da minha avó…
A escuta do jornalismo é a escuta que a gente faz com todos os sentidos. Não há nada mais importante do que escutar no jornalismo. Não é uma escuta fácil. A gente tem de se despir de si, de se desabitar para ir até ao mundo do outro e depois fazer esse caminho de volta.
Hoje quero escutar outras espécies. Já comecei a fazer algumas matérias, a última foi com fungos. Ainda busco entender como é que é possível escutar corpos tão diferentes do meu. Isso é um dos grandes desafios de Sumaúma e hoje é o que me move.
Amazónia como centro do mundo
No momento de colapso, com essa crise climática, com essa extinção em massa de espécies, com uma minoria dominante que segue destruindo o planeta, os centros do nosso mundo são os enclaves onde a natureza resiste, não os centros de poder político e financeiro, onde é decidida a destruição da natureza. O centro do mundo é a Amazónia, as outras florestas tropicais, os oceanos, todos os biomas, não Washington, Pequim, Londres, Lisboa. O centro do mundo é onde está a vida, não onde estão os mercados.
Correspondente de guerra
Cobria diferentes amazónias há mais de 20 anos. Comecei a acompanhar famílias que foram expulsas de Belo Monte [pela construção de uma hidroeléctrica, na bacia do rio Xingu, na região de Altamira, Estado do Pará].
Vivia em São Paulo. Ia a Altamira e voltava. Mudei-me para Altamira em 2017 por coerência. Pensei: se sou jornalista e digo que a Amazónia é o centro do mundo, porque é que não estou morando na Amazónia?
Sinto-me correspondente de guerra. É uma guerra não reconhecida. É uma guerra contra a natureza. É uma guerra que começou há mais de 500 anos, com a invasão colonial, tratando a natureza como um corpo de exploração, seguiu até hoje e vai durar além das nossas vidas. Coloquei-me na linha da frente.
Imaginar o futuro
Na pandemia de covid-19, eu e outras pessoas fizemos um movimento, #liberteofuturo. Tudo começou com duas pessoas conversando por WhatsApp. Outras juntaram-se. A gente fazia manifestações online, convidava as pessoas a imaginar um futuro.
Imaginar um futuro onde possamos e queiramos viver é muito mais difícil do que parece. A nossa imaginação está tão encaixotada, tão limitada, tão empobrecida pela nossa vida como consumidores que a gente não consegue imaginar muito além do óbvio. É preciso libertá-la.
Depois dessa experiência, eu e o meu companheiro [Jonathan Watts] imaginámos uma plataforma de jornalismo no centro do mundo. Isso foi em 2020. Em 2022, nós e outras jornalistas [Carla Jimenez, Talita Bedinelli, Verónica Goyzueta] lançámos a Sumaúma.
Sumaúma
Sumaúma é uma das maiores árvores da Amazónia. Os povos indígenas dizem que liga o céu à terra. É uma árvore extremamente colaborativa. Chega a libertar mil litros de água por dia para formar os rios voadores, que levam chuva e infelizmente hoje estão levando também fumaça das queimadas – a Amazónia está queimando, o Pantanal está queimando, o Cerrado está queimando; o Brasil inteiro queimou de Janeiro até Setembro o equivalente ao território do Reino Unido.
Chamamos Sumaúma à nossa plataforma de jornalismo. Busca irrigar o debate, trazer essas vozes que há dentro da floresta, trazer outra centralidade para a periferia do mundo.
Jornalistas-floresta
Fizemos a primeira edição no nosso programa de co-formação de jornalistas-floresta, que se chama Micélio. Participaram 14 jovens indígenas. Nós, velhos jornalistas, ensinamos o nosso jornalismo com rigor, com a palavra exacta. E eles, jovens indígenas, ensinam como eles contam histórias. Os indígenas contam histórias há mais de dez mil anos.
Contratámos três desses primeiros 14 jovens e estamos a abrir a segunda edição. Não formámos só para nós. Alguns vão trabalhar na Sumaúma, outros vão irrigar outras plataformas de jornalismo na Amazónia, outros vão entender que esse não é o caminho deles. A ideia é que em dez anos, na Sumaúma, os jornalistas-floresta sejam maioria e a gente esteja fora.
Outra linguagem
Foi uma linguagem, entendida como aquilo que nos constitui, que nos trouxe o colapso. Essa linguagem – colonialista, branca, patriarcal, binária – continua a destruir o mundo. Precisamos de outra linguagem, da linguagem dos povos que permaneceram como natureza.
Na Sumaúma, a gente não fala na natureza como um recurso. A gente não trata seres vivos por toneladas, a gente trata como os povos indígenas – o rio é pai, a montanha é mãe, a floresta é relação constante. A gente cobre o colapso climático a partir da Amazónia, atravessado pelas questões de raça, classe, género e também de espécie.
Temos um projecto com a Escola de Direito da Universidade de Nova Iorque, Mais-que-humanes. Procuramos fazer matérias a partir da perspectiva de rios, de árvores, de outras espécies. Quando Lula da Silva foi reeleito Presidente do Brasil, a gente chamou cientistas para falar em nome das espécies que eles estudam, fazer reivindicações. A gente faz várias experiências.
O activismo como necessidade
Talvez possa situar a minha primeira acção activista em 2015. Eu estava desde 2011 a acompanhar as famílias que viviam nas ilhas do rio Xingu ou nas zonas ribeirinhas que foram atingidas pela hidroeléctrica de Belo Monte.
Passei alguns dias de canoa, no rio Xingu, com uma ribeirinha chamada Raimunda Gomes da Silva. Contou-me que, quando foi tirar as coisas dela, já tinham incendiado a ilha e ela cantou para as plantas, pedindo perdão.
O marido dela, o senhor João Pereira da Silva, foi chamado à empresa Norte Energia. Viu que ia perder tudo. Esperava que lhe dessem um valor justo pela casa e a roça e deram-lhe a notícia de que receberia um valor insuficiente para comprar terra para voltar a plantar.
Ele tinha mais de 60 anos e ia passar fome. Então pensou: “Eu vou matar essa pessoa que está à minha frente; eu vou acabar com a minha vida, mas vou salvar a dos outros.” Só que o senhor João não é um assassino. Em vez de matar, paralisou, paralisou a voz, paralisou as pernas. Saiu carregado dali. Mais tarde veio a perceber-se que teve um acidente vascular cerebral.
Eu contei esta história, mas entendi que precisava de fazer mais. Voltei para São Paulo e comecei a bater nas portas dos psicanalistas que eu conhecia dizendo: “Vocês precisam de fazer alguma coisa, vocês precisam de ir para lá, essas pessoas precisam de outro tipo de escuta que não a jornalística – para não morrerem, para não matarem.”
Criou-se um grupo que durante um ano se preparou na Universidade de São Paulo. Nasceu a Clínica de Cuidado, projecto de refugiados de Belo Monte, com o objectivo de escutar, oferecer tratamento, documentar a situação. Essa foi a minha primeira acção de activismo. Liberte o futuro foi outra. Amazónia centro do mundo foi outra.
Activismo versus jornalismo
Estamos num momento muito particular da trajectória humana. Quem não é activista hoje ou está morto ou está em coma. Nós estamos em risco de extinção. Infelizmente as pessoas não estão vendo a emergência. O capitalismo sequestrou o nosso instinto de sobrevivência.
Criar a Sumaúma é uma acção activista, mas o jornalismo da Sumaúma tem um compromisso profundo com os princípios do jornalismo, com a busca para chegar o mais perto possível das verdades. Todas as nossas matérias passam por “checagem” [verificação] e por revisão, são traduzidas por tradutores profissionais nativos [de português, espanhol ou inglês], as traduções são revistas. Recuperámos o rigor que grande parte das empresas tradicionais de jornalismo perdeu por causa da crise.
Quando um jornalista diz que é totalmente neutro, está a dizer uma mentira. Eu tenho 36 anos de jornalismo e aprendi há muito que as subjectividades às vezes são o que realmente determina os grandes acontecimentos. A objectividade absoluta não se confirma na vida. As pessoas não são assim.
Um apelo global
O meu último livro chama-se Banzeiro Òkòtó: Uma Viagem à Amazónia Centro do Mundo”. É um livro de viagem, é um livro de reportagem, é um livro de ensaio, é um livro autobiográfico que parte dos meus mais de 25 anos a cobrir a Amazónia. É a minha busca para me reflorestar, para entender a floresta e para, entendendo a floresta, me entender de um modo diferente. E é uma chamada à acção global. É uma chamada a “amazonizar-se”.
Agir a partir da Europa
A União Europeia decidiu adiar em pelo menos um ano a lei antidesmatamento [a directiva que combate a desflorestação proibindo a importação de 27 produtos]. A natureza não obedece às negociações feitas pelos homens de terno, às pressões feitas inclusive pelo próprio Lula da Silva.
Acho que é muito importante as pessoas aqui, na Europa, entenderem que têm tudo que ver com a destruição da Amazónia. A Amazónia está no prato da Europa. A carne do desmatamento também é consumida aqui, a soja do desmantamento também alimenta porcos aqui, as árvores também são transformadas em móveis e em objectos de design aqui. O ouro que está nas joalharias causa genocídios na Amazónia.
Grande parte das corporações transnacionais que destroem a floresta tem bandeira de países europeus, como a Noruega, o Reino Unido, a França (assim como dos Estados Unidos e do Canadá). Essa ideia de que são os “bárbaros” de lá que estão a destruir a Amazónia é uma mentira. Há as elites extractivistas brasileiras, sim, que estão a destruir a Amazónia e que estão muito ligadas às elites extractivistas daqui.
A Amazónia está a ser comida aqui. Os europeus também estão comendo a Amazónia.
Há muitas coisas para fazer aqui. As pessoas têm de pressionar [o Parlamento Europeu] para que não aconteça esse adiamento [proposto pela Comissão Europeia e aprovado pelo Conselho da União Europeia]. As pessoas têm de parar de comer essa carne, têm de parar de comer esse porco alimentado com essa soja, têm de parar de usar ouro, têm de parar de usar essa madeira e têm de pressionar as grandes cooperações.
A minoria dominante, uma minoria de bilionários, não vai parar. Só nós, a maioria afectada, podemos parar. Está tudo para fazer aqui. Aqui também é preciso haver uma linha de frente muito forte para barrar a destruição da Amazónia e das outras florestas tropicais, dos oceanos, dos biomas. Não precisam de ir para lá lutar por isso. Tem de ser aqui.
Responsabilidade colectiva
No caso do Brasil, Portugal é o lugar. A destruição da Amazónia começou quando Portugal invadiu o que chamou Brasil. Começou quando entrou uma linguagem que trata a natureza como um corpo para exploração.
Não se entende o colapso climático sem entender o colonialismo, a escravidão, o patriarcado. Entre os séculos XVI e XVII, mais de 90% dos povos indígenas foram exterminados por vírus e bactérias trazidos por invasores europeus.
A natureza virou mercadoria. É o que as grandes corporações e as elites extractivistas continuam a fazer. A Amazónia é uma responsabilidade colectiva.
Não é uma questão de culpa. Individualmente ninguém aqui é culpado. É claro que não são as pessoas que estão andando aqui pelas ruas de Lisboa que são responsáveis por quatro séculos de escravidão, pelo extermínio dos povos indígenas no que hoje é o Brasil, mas essas gerações usufruem das riquezas que foram tiradas de lá. E tem de haver responsabilidade colectiva. Não é por compaixão, não é por sermos bons, é por precisarmos de nos salvar.