“Temos de curar a doença da inacção climática”: estamos a enfrentar ameaças recordes

Investimento em combustíveis fósseis deve ser redireccionado para transição energética e protecção da saúde, sugere relatório Lancet Countdown. Populações “estão a enfrentar ameaças recordes”.

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A Amazónia, no Brasil, testemunhou em 2023 uma seca histórica BRUNO KELLY / REUTERS
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A seca extrema afectou 48% dos solos do planeta em 2023, estima o relatório Lancet Countdown dedicado à saúde e à crise climática. Os dados deste ano, divulgados esta quarta-feira, revelam que as populações da Terra “estão a enfrentar ameaças recordes”: dos 15 indicadores que monitorizam os riscos, as exposições e os impactos na saúde associados à mudança do clima, dez atingiram novos recordes.

“As emissões recordes estão a representar uma ameaça recorde para a nossa saúde. Temos de curar a doença da inacção climática: reduzindo as emissões de gases com efeito de estufa, protegendo as pessoas dos extremos climáticos e acabando com a nossa dependência dos combustíveis fósseis – para criar um futuro mais justo, mais seguro e mais saudável para todos”, afirma António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, citado numa nota de imprensa do Lancet Countdown.

A nona edição do documento conclui que, em 2023, a maior frequência de ondas de calor e episódios de secas prolongadas esteve associada a mais de 151 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar moderada ou grave do que o valor médio registado anualmente no período entre 1981 e 2010.

O ano passado foi o mais quente das nossas vidas. A temperatura média global em 2023 foi 1,49 graus acima do que era antes da Revolução Industrial. Foram 12 meses marcados não só pela seca hidrológica, mas também por ondas de calor, incêndios florestais devastadores – incluindo em Portugal –, tempestades, furações e inundações. Não espanta, portanto, que os autores do Lancet Countdown tenham identificado diversas situações em que a crise climática tenha ameaçado a saúde humana.

Em 2023, segundo o relatório, as populações estiveram expostas, em média, a mais 50 dias de temperaturas perigosas para a saúde do que o esperado sem alterações climáticas. Estima-se também a exposição a um máximo histórico de 1512 horas de temperaturas elevadas que representam, no mínimo, um risco moderado de tensão térmica durante a prática de exercícios leves ao ar livre (caminhar ou andar de bicicleta). Esse valor constitui um aumento de 27,7% (328 horas) em relação à média anual do período 1990-1999.

A subida das temperaturas médias causou ainda, de acordo com o documento, um recorde de 512 mil milhões de horas potenciais de trabalho perdidas em todo o mundo em 2023 (um aumento de 49% em relação à média do período entre 1990 e 1999). Esta estimativa implica perdas potenciais de rendimento a nível global equivalentes a cerca de 773 mil milhões de euros.

As mortes relacionadas com o calor continuam a aumentar, sendo que, se não formos capazes de respeitar o Acordo de Paris, é provável que mortes relacionadas com o calor venham a exceder as associadas ao frio, segundo o relatório. Os óbitos associados às altas temperaturas em pessoas com mais de 65 anos, por exemplo, aumentaram 167% em relação aos valores médios registados na década de 1990.

Dinheiro do fóssil para a saúde

Os autores do relatório pedem que os biliões de dólares gastos no financiamento de combustíveis fósseis, directo ou indirecto, sejam redireccionados para uma “transição rápida e justa”, permitindo às sociedades alcançarem modelo económico que não polua a atmosfera com carbono. Dessa forma, garantem, estariam a proteger a saúde de milhares de milhões de pessoas em todo o mundo.

“Apesar desta ameaça, vemos que os recursos financeiros continuam a ser investidos precisamente naquilo que prejudica a nossa saúde. O reaproveitamento dos biliões de dólares que todos os anos são investidos ou subsidiados na indústria dos combustíveis fósseis proporcionaria a oportunidade de realizar uma transição justa e equitativa para as energias limpas e a eficiência energética, bem como para um futuro mais saudável, beneficiando, em última análise, a economia mundial”, observa Marina Romanello, directora executiva da Lancet Countdown no Instituto de Saúde Global da Universidade College London, entidade no Reino Unido que coordena o relatório.

Para que haja essa transição, o relatório enfatiza a importância de uma transformação global dos sistemas financeiros centrada na saúde. Os recursos anteriormente investidos na cadeia de produção e distribuição do petróleo, gás e carvão seriam transferidos para um modelo de emissões zero, defendem os autores, proporcionando “benefícios rápidos para a saúde e a economia” através de “segurança energética, ar e água mais limpos, dietas e estilos de vida mais saudáveis e oportunidades de emprego mais sustentáveis”.

“As empresas de petróleo e gás – amparadas por muitos Governos e pelo sistema financeiro global – continuam a reforçar a dependência mundial dos combustíveis fósseis. Estes investimentos perversos, juntamente com o grave fracasso em fazer as mudanças estruturais necessárias no sector da energia, estão a comprometer as economias de que depende a subsistência das pessoas e a deixar em risco a saúde e a sobrevivência de milhões de pessoas”, refere Stella Hartinger, co-autora e directora do Lancet Countdown para a América Latina, citada num comunicado.

O relatório resulta do trabalho conjunto de 122 especialistas de 57 instituições académicas e agências das Nações Unidas, incluindo a Organização Mundial de Saúde e a Organização Meteorológica Mundial. Todos os anos, o Lancet Countdown costuma ser publicado pouco antes da Cimeira do Clima das Nações Unidas (COP29), oferecendo aos decisores políticos e técnicos um documento actualizado sobre as relações entre clima e saúde.

“A COP29 pode ser um ponto de viragem nesta luta, onde os países se podem comprometer com uma acção climática mais ambiciosa que não só proteja o planeta, mas também melhore a saúde. Não há tempo a perder”, conclui John-Arne Røttingen, director executivo da Wellcome, fundação britânica que apoia todos os anos a elaboração do relatório, referindo-se à cimeira que vai decorrer em Bacu, no Azerbaijão, de 11 a 22 de Novembro.

Novos indicadores no relatório

Nesta edição, o documento inclui sete novos indicadores, incluindo o aumento das temperaturas nocturnas – que têm impacto na qualidade de sono –, a precipitação (chuva) extrema, a perda de cobertura arbórea e as tempestades de pó ou areia.

O relatório refere que 61% da área terrestre global registou, ao longo da última década (2014-2023), um aumento dos fenómenos de precipitação extrema em comparação com a média de 1961-1990. Esta mudança no padrão das chuvas influencia o risco de inundações, doenças infecciosas e contaminação da água.

A transmissão da dengue pelos mosquitos Aedes albopictus aumentou 46% e pelo Aedes aegypti 11% na última década (2014-2023) em comparação com a década 1951-1960. Um máximo histórico de mais de 5 milhões de casos de dengue foi registado no ano passado em mais de 80 países ou territórios.

Existem, contudo, algumas razões para celebrar (os co-autores preferem falar num “optimismo cauteloso”). As mortes causadas pela poluição atmosférica associada aos combustíveis fósseis caíram quase 7%, de 2,25 milhões em 2016 para 2,09 milhões em 2021, segundo que o relatório atribui 59% desse declínio aos esforços para limitar a queima de carvão (e, consequentemente, as partículas poluentes que resultam desse processo).

Por outro lado, a percentagem de electricidade produzida a partir de energias renováveis modernas e limpas atingiu 10,5% em 2021, quase o dobro de 2016 (5,5%). O investimento global em energia limpa cresceu 10% em 2023, excedendo o total investido em combustíveis fósseis em 73%. Já o marcado laboral em energias renováveis alcançou um recorde com 13,7 milhões de funcionários em 2022 (aumento de 35,6% desde 2016).

“Se boas decisões forem tomadas, as mudanças podem acontecer. A beleza do relatório de 2024 é conseguir encontrar este equilíbrio entre dizer o que está a piorar – e há coisas que todos podemos ver – e dizer o que está a avançar”, concluiu Jeremy Farrar, director científico da OMS, numa conferência de imprensa virtual de apresentação do relatório.