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É Bonita a Festa: o olhar de Glauber, Boal, José Celso e Barrio sobre o 25 de abril
Exposição no Espaço NowHere, que vai até 10 de novembro, reúne histórias de ícones da cultura que vivenciaram o retorno da democracia em Portugal, com a Revolução dos Cravos.
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A Revolução dos Cravos, de 25 abril de 1974, que livrou Portugal de uma longeva ditadura, provocou impactos profundos no Brasil, em especial, entre os artistas que sofriam com uma fortíssima repressão por parte de militares que haviam tomado o poder no país. A liberdade conquistada pelos portugueses atraiu personagens como o cineasta Glauber Rocha, que havia sido exilado, os diretores de teatro Augusto Boal e José Celso Martinez Correa e o artista plástico Artur Barrio, que nasceu no Porto, mas viveu boa parte da vida no Rio de Janeiro. Era o momento ideal para respirar os ares da democracia.
Boa parte do que viveram esses personagens entre 1974 e 1976 em Portugal pode ser vista na exposição É Bonita a Festa, Pá, que está em cartaz no Espaço NowHere, em Lisboa até 10 de novembro. Segundo uma das curadoras da mostra, Cristiana Tejo, a ideia é contextualizar aquele momento histórico e traçar um paralelo com o recente fluxo de artistas brasileiros que decidiram cruzar o Atlântico e se instalar em território luso.
“Na exposição, mostramos a atmosfera de calorosa receptividade a Glauber, Artur, Boal e José Celso, com suas experimentações estéticas e a vivência em liberdade em contraste com a ditadura brasileira”, diz Cristiana. Em outra etapa, serão entrevistados 37 artistas contemporâneos, que deixarão um arquivo histórico paras as novas gerações. Ela lembra que as obras expostas no Espaço NowHere são uma segunda versão, mais documental, da Bienal Internacional de Cerveira, que ocorreu entre março e junho últimos.
Cinema revolucionário
Glauber Rocha, que nasceu em Vitória da Conquista em 1939 e morreu no Rio de Janeiro, em 1981, chegou em Lisboa em 26 de abril de 1974. Ele, que estava exilado inicialmente em Cuba, tão logo desembarcou em Portugal, participou da reunião no Sindicato Nacional dos Profissionais de Cinema e apoiou o plano de ação da Comissão de Cineastas Anti-Fascistas. Do encontro, surgiu a ideia de filmar o histórico 1º de maio de 1974.
Os profissionais foram divididos em 10 equipes, que se posicionaram em várias partes de Lisboa para cobrir o evento. Glauber era o único estrangeiro a participar, no papel de entrevistador. O resultado foi o filme coletivo As Armas e o Povo (1975), que tem como elementos principais uma retrospectiva dos acontecimentos do 25 de Abril, cenas da manifestação do 1º de maio e entrevistas feitas pelo cineasta. Na exposição, há trechos do filme Outro País (1999), de Sérgio Trufaut, sobre a participação de Glauber naquele trabalho coletivo.
Documentos divulgados pela Comissão Nacional da Verdade no Brasil, em 2014, sugerem que a ditadura militar pretendia assassinar Glauber em Portugal, já que era considerado um forte inimigo do regime. Ele voltaria a viver em território luso em 1981, em Sintra, mas, por causa de sua doença, retornou ao Brasil, morrendo pouco tempo depois.
Polêmicas
O artista plástico Artur Barrio, nascido no Porto em 1945, deixou Portugal aos 10 anos de idade rumo a Angola e, depois, ao Brasil. Ele retornaria à terra natal 18 anos depois, atraído pela Revolução dos Cravos. Ele aportou em Lisboa, em julho de 1974. Durante quatro meses, viajou pelo um país em revolução, executando alguns trabalhos em espaços abertos, dando continuidade ao que havia começado no Rio de Janeiro. No Norte, iniciou a obra 4 Movimentos, na Praia de Mindelo, e Metal, Sebo, Frio, Calor e Armadilha, em outras praias do litoral do Douro, sob anonimato.
Depois de alguns meses do retorno ao Rio de Janeiro, Barrio seguiu para Paris, onde conheceu o crítico de arte português Egídio Álvaro, que o convidou para a segunda edição dos Encontros Internacionais de Arte, em Viana do Castelo, em agosto de 1975. Ali, ele realizou Áreas Sangrentas, continuidade da obra 4 Movimentos. Na Praça da República, o artista posicionou uma instalação com elementos recolhidos na praia de Valadares, em Viana, e na Feira de Espinho. O cheiro forte exalado da obra provocou uma discussão entre a polícia e a população local sobre a permanência ou não do trabalho. A decisão foi por mantê-lo ali.
Arte radical
O dramaturgo José Celso Martinez Correa, morto em 2023, e quinze integrantes do Teatro Oficina desembarcaram em Portugal em 28 de setembro de 1974, numa espécie de auto-exílio coletivo. Zé Celso havia aceitado um convite do Ministério da Educação e da Fundação Calouste Gulbenkian para deixar o Brasil, depois de ser preso e torturado por dois meses e meio pelos militares. O diretor de teatro queria participar do processo revolucionário vivido pelos portugueses, com intervenções artísticas radicais.
Numa das apresentações do espetáculo Galileu Galilei, em São João do Campo, Coimbra, houve uma grande confusão. Pelo relato de José Celso, a multidão quase derrubou uma paróquia feita de madeira, obrigando a peça a ser realizada em um clube de futebol. Durante a demonstração do Carnaval do Povo e na cena Ócio, Pão, Tesão, Habitação é a Terra, em que as atrizes do elenco davam colares e jogavam perfume nas camponesas, os homens atacaram a atriz Maria Alice Vergueiro.
Diante desse acontecimento, o grupo teatral, que havia sido batizado de Comunidade Oficina Samba, perdeu todas as verbas oficiais. Houve, então, uma divisão de tarefas para angariar fundos, e uma delas resultou no documentário O Parto, sobre a Revolução dos Cravos, codirigido por José Celso Martinez e Celso Luccas, que está na mostra no NowHere. Com a escassez de oportunidades em Portugal, a dupla seguiu para Moçambique, onde dirigiu o primeiro filme do período pós-independência, intitulado 25 (1976). O exílio do dramaturgo acabou em 1978.
Caminho de volta
O primeiro exílio de Augusto Boal, que morreu em 2009, foi para Buenos Aires, em 1971, após ser preso e torturado pelos militares brasileiros. Com a Argentina também mergulhada numa pesada ditadura, ele aceitou, em 1976, convite do crítico Carlos Porto para uma temporada em Lisboa. Em solo português, dizia que o pai dele havia saído de Portugal como “exilado econômico” e ele voltava à terra paterna "como exilado político”.
Boal e a mulher, Cecília, tinham sido contratados para dar aulas na Escola Superior de Teatro do Conservatório Nacional de Lisboa. Os subsídios dados à época pelo Governo para a cultura diminuíram muito, pois o setor passou a ser visto como um luxo. Foi nesse momento que o diretor encontrou o ator Helder Costa e o recém-criado grupo teatral A Barraca, retornando aos palcos.
Durante a temporada portuguesa, Boal produziu, escreveu e dirigiu três peças: A Barraca Conta Tiradentes (1977), Ao qu´isto chegou! — Feira Popular de Opinião (1978) e Barraca Conta Zé do Telhado (1978). O brasileiro teve participação decisiva na cena teatral portuguesa, em que desenvolveu as bases conceituais do Teatro do Oprimido
Boal ainda finalizou Murro em Ponta de Faca, obra sobre os altos e baixos do exílio, lançou alguns de seus livros que se tornaram referências internacionais, como Milagre no Brasil (Plátano, 1976) e Técnicas Latino-americanas de teatro popular: uma revolução copernicana ao contrário (Centelha, 1977).