O caminho da CPLP é cooperar em português em um mundo polarizado

Em entrevista ao PÚBLICO Brasil, o embaixador brasileiro Juliano Féres Nascimento fala sobre os projetos e os desafios da CPLP, uma comunidade em que o português tornou-se o canal de integração.

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O mundo caminhou para a divergência, caminhou para extremos. Temos uma organização que trabalha com convergência e consenso, afirma o embaixador Juliano Nascimento Vicente Nunes
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Durante a pandemia, o Brasil estabeleceu uma parceria que permitiu aos países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa terem seus próprios testes sem terem de pagar o preço exorbitante cobrado pelos principais laboratórios farmacêuticos mundiais. Esse é um exemplo da cooperação que, segundo o embaixador do Brasil na CPLP, Juliano Feres Nascimento, deve marcar o relacionamento entre os nove países que têm como língua oficial o português.

Uma marca da CPLP é sua extensão: reúne nações que partilham a mesma língua em quatro continentes. São países que buscam um caminho comum para o seu desenvolvimento. Para eles, a língua portuguesa deve ser um canal de integração que vai muito além da afirmação e difusão do idioma. Exemplo disso é a atuação que vem ocorrendo na saúde, agricultura e cultura.

Criada em julho de 1996, então com sete países - Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe - a CPLP hoje reúne nove nações. Na época, Timor Leste ainda lutava por sua independência da Indonésia e Guiné Equatorial apenas escolheu fazer parte do comunidade mais tarde.

Em Lisboa, cidade onde se localiza a sede da CPLP, Nascimento falou sobre a importância da comunidade para a população dos países que falam o português.

Como o Brasil se integra na comunidade de países lusófonos?
Nossa missão é mostrar que a razão de ser dessa organização é a integração. Queremos promover a língua portuguesa pelo mundo, mostrar que a organização existe, que tem uma função no universo das organizações internacionais. É uma organização muito nossa. Digo nossa, porque tem a ver com a nossa língua e com a nossa cultura. Existe todo um universo compartilhado que é propiciado pela língua portuguesa. Por interações que se estabeleceram ao longo de muitos anos de convívio. Tudo isso dá uma dinâmica muito interessante para a organização, que está presente em quatro continentes, com arranjos regionais muito diferentes. Portugal aqui com a União Europeia. Nós com o Mercosul e com a Unasul, com o nosso contexto sul-americano. Os africanos com vários arranjos como a União Africana e Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (CDAA), entre outras. E agora o Timor-Leste ingressando na Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN).

Na prática, como isso funciona?
Na hora que eu tenho uma empresa brasileira que está se estabelecendo na Ásia. Se tem alguma dificuldade, eu tenho um parceiro que fala português, que pode ter acesso a uma série de facilidades por ser membro da ASEAN. Por exemplo, em uma exportação para Tailândia, que também é membro da ASEAN. Portugal desempenha um papel importantíssimo nas nossas tratativas com a União Europeia. No acordo que estamos fazendo do Mercosul com a União Europeia, a parceria com Portugal tem sido fundamental para desarmar barreiras. Esse acordo pode ser positivo para todos.

Qual o posicionamento do Brasil dentro da CPLP?
Dentro da CPLP, procuramos duas coisas. Primeiro, valorizar nossa contribuição em todos os sentidos, seja social, econômico ou cultural. Fazemos isso através de vários programas liderados pelo Brasil. Programas de cooperação com a África, por exemplo, que não se reduzem a um só país. Essa cooperação é mais universal, no sentido que ela pega pelo menos mais dois países da CPLP. Eu preciso de, pelo menos, um trio para fazer qualquer tipo de atividade dentro da CPLP.

Isso é difícil?
Não é uma questão de dificuldade ou facilidade. A questão é alinhar a necessidade com a capacidade que nós temos de oferecer soluções. A mesma dificuldade que terá um agricultor em Angola, muitas vezes é a mesma em Cabo Verde. A mesma dificuldade que um produtor de cacau tem em São Tomé, talvez o nosso produtor tenha na Bahia. Então, esse alinhamento é relativamente fácil. Grande parte dos países são países do sul global, com exceção de Portugal, que está inserido no contexto europeu. Conhecemos as carências e as dificuldades. Da mesma maneira que em relação aos negócios, a cooperação também é mão dupla. Quando você coopera com um país, você também está recebendo, conhecendo os mecanismos para que aquilo seja efetivo e não apenas um projeto de boas intenções.

E o papel do Brasil?
O papel do Brasil, nesse contexto, é de ser um condutor. Portugal nos vê como um personagem importante na construção de consensos. As diferenças entre os países são muito grandes. Se formos olhar os índices de desenvolvimento ou os índices sociais, temos decalagens enormes entre os países membros da CPLP. O Brasil tem esse papel intermediário, não só porque não somos um país desenvolvido. Temos carências e dificuldades e procuramos sair da armadilha da diferença social e da desigualdade na distribuição da riqueza. O Brasil não é um país pobre, mas um país com distribuição desigual da nossa riqueza. Riqueza no Brasil não falta.

Como se dá a cooperação entre países de patamares de desenvolvimento diferentes?
Eu dou o exemplo da cooperação com a Alemanha ou o Japão, dois países com que o Brasil coopera em diversas áreas. Só que a diferença cultural é muito grande. Pela diferença cultural e de mentalidade, o exercício de cooperação pode ser mais difícil. Com os parceiros na CPLP não. Falamos a mesma língua, temos um histórico cultural muito semelhante.

Hoje, quais são os principais projetos que o Brasil toca?
Temos mais de 50 projetos em andamento. Vários deles têm a ver com o componente social. A Fiocruz tem um trabalho maravilhoso na área de saúde. O banco de leite humano é um projeto desenvolvido no Brasil que exportamos para o mundo. Tem grande impacto nas sociedades, diminuindo a desnutrição e a mortalidade infantil radicalmente.

Na área de vacinas também?
O Covid está aí para provar que, se não trabalharmos juntos, todo mundo padece junto. Temos projetos na área de vacinas e de epidemiologia na CPLP. Desenvolvemos um trabalho para que os países da CPLP possam fazer o seu próprio teste de Covid. No auge da pandemia, conseguir esse teste era um fenômeno, além do preço exorbitante que cobravam. Nós desenvolvemos, em parceria com São Tomé e depois com os outros países, uma central para fazer o teste de Covid, Muitas vezes você tem o kit, faz o teste, mas não tem o laboratório para processar. Foi um esforço muito importante e que estamos ampliando agora.

E outras áreas?
No manejo de águas também. A questão hídrica é sempre um fator de muita pressão econômica e social. Por exemplo, Cabo Verde é um arquipélago que tem pouco acesso à água potável e conta com a Agência Nacional de Águas (ANA) que participa de projetos por lá. Na área de educação, em vários países africanos a língua portuguesa convive com línguas originárias, que têm muita força. Nos países africanos, essas línguas convivem com o português no dia a dia das pessoas. Então, o reforço da língua portuguesa é importante.

O Brasil atua no Timor-Leste?
Temos um programa de treinamento e capacitação para professores lá em Timor-Leste. Hoje em dia, esse trabalho já não é mais do Brasil. Estamos fazendo isso em parceria com Portugal, com o Instituto Camões. É um projeto CPLP. Antes era uma cooperação que o Brasil prestava. Além do aprendizado, também na formação e capacitação de professores em Timor-Leste.

E na agricultura?
Temos algumas coisas interessantes em relação ao algodão e ao café. É óbvio que, nesse caso, Portugal tem uma participação menos relevante, porque em geral são culturas tropicais. A expertise é brasileira, angolana, moçambicana. Portugal se apresenta como um parceiro, às vezes só no financiamento.

E quanto a programas na área de segurança?
Temos ações no campo da mobilidade, na questão dos documentos de viagem e das facilidades de residência. Isso tem a ver com o combate ao crime organizado. No contexto da CPLP, temos algumas fragilidades tecnológicas e de capacitação. Contamos com a colaboração de instituições policiais brasileiras, como a Polícia Federal, que tem grande qualidade de investigação e de acesso a material técnico para fazer investigações. Recentemente, foi fechado um acordo com a polícia judiciária de Portugal. Ter fluidez na troca de informação, no caso de uma investigação policial, é crucial. Outra questão importante que temos que trabalhar juntos é a garantia documental. O Brasil avançou muito nessa área. Há 20 anos, o nosso passaporte era o mais falsificado do mundo, os quesitos de segurança do documento eram ridículos. Se o falsificador tivesse o mínimo de expertise, ele falsificava o passaporte com extrema facilidade. Hoje em dia, isso mudou radicalmente com uma série de mecanismos que protegem o documento. Nem todos os parceiros na CPLP têm essa capacidade. A nossa ideia é ajudá-los para que todos cheguem a esse patamar de segurança.

Quais são os principais desafios da CPLP?
A presidência está com São Tomé, que apresentou o tema de juventude e sustentabilidade para o seu mandato de dois anos. A preocupação maior tem a ver com o engajamento dessa nova geração. Estamos percebendo um distanciamento e uma certa desilusão com os mecanismos de organização internacional, com a própria política. Eu acho que o grande desafio para os próximos anos é conquistar e manter o engajamento da juventude. A tecnologia é uma ferramenta de dois gumes. Pode ser muito útil para essa comunicação, sobretudo com essa geração mais jovem, mas pode ser muito perigosa porque pode ser alienante. Em São Tomé, os ministros adotaram uma carta de direitos em ambientes digitais. Hoje em dia, no recanto mais remoto o sujeito vai ter um celular. O desafio é fazer com que esse acesso seja transformador, em um sentido positivo, para a língua, a cultura e o conhecimento. Que não seja esse bombardeio de informação desconectada e muitas vezes falsa e distorcida.

A CPLP nasceu por impulso do ministro José Aparecido. Hoje, a instituição representa o que ele pensava?
Naquele momento, houve uma visão política e um componente cultural muito importante. O Brasil construindo o Mercosul. Portugal recém-ingressado na União Europeia. Tinha a visão do José Aparecido e a visão dos políticos da época, personagens de grande estatura. Foram duas vertentes, a cultural e a política. Foi um momento realmente de grande esperança e de visão de um futuro próspero e compartilhado. Hoje, o contexto internacional é completamente diferente. Vivemos um momento totalmente polarizado. As pessoas estão sempre procurando se justificar nos seus extremos, em vez de procurar áreas de convergência. Nesse contexto tão desafiador, a CPLP se torna ainda mais importante. Temos uma organização que trabalha com a convergência e o consenso. O papel que a CPLP terá daqui para frente é desafiador e complexo. A CPLP terá um papel muito importante nos nossos países, que é a defesa de um dos idiomas mais falados no mundo.

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