Raias grávidas e florestas de algas: bem-vindos ao Gorringe, refúgio da vida marinha

Expedição científica explora a mais alta montanha da Europa Ocidental. Da base submersa até aos picos que se aproximam da superfície, há uma vida extraordinária que se quer conhecer para proteger.

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Uma raia grávida a nadar por cima de uma floresta de algas nos picos do Gorringe Jordi Chias/Fundação Oceano Azul
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São seis da manhã, o céu e o mar são de dois tons de anil, mais do que azul. Há luz, mas o sol ainda não rompeu e está uma temperatura suave. Estamos no meio do mar, a cerca de 222km para sudoeste do cabo de São Vicente, no Algarve. Ao longe, vêem-se os mastros iluminados do histórico veleiro Santa Maria Manuela, construído em 1937 para a pesca ao bacalhau. É para lá que vamos. É preciso descer por uma escada de corda atirada pela amurada do navio D. Carlos I, da Marinha Portuguesa, para nos sentarmos na borda de um bote de borracha que vai cruzar os cerca de dois quilómetros que nos separam do veleiro.

Porque é que viemos até aqui? Porque sob esta água que se vai tornando cada vez mais impossivelmente azul, à medida que os raios de sol vencem a escuridão, fica o banco de Gorringe, um monte submarino dentro da Zona Económica Exclusiva (ZEE) portuguesa. É a mais alta montanha da Europa Ocidental: em certas zonas vai até 5000 metros de profundidade e nos picos chega até perto da superfície das águas.

Estas características fazem dos dois cumes do Gorringe, o Gettysburg e o Ormonde, verdadeiros oásis de vida marinha, com uma biodiversidade única.

Só que escondidos sob as águas.

“Esta é a maior montanha da Europa Ocidental, e fica aqui no nosso quintal. Mas Portugal não conhece este monte submarino, apesar de estar em território português”, disse no convés do Santa Maria Manuela Emanuel Gonçalves, administrador da Fundação Oceano Azul e responsável científico da missão que durante três semanas, em Setembro, levou 28 cientistas, portugueses e estrangeiros, até ao Gorringe, para conhecer aquele oásis subaquático.

Mapa tridimensional do Banco de Gorringe Marinha Portuguesa

Ao início da manhã, com o sol a espreitar por entre nuvens — a tempestade que nos vinham a prometer desde que partimos de Lisboa estava prestes a chegar —, Emanuel Gonçalves explicou ao PÚBLICO, recém-chegado a bordo, vindo do navio D. Carlos I, do Instituto Hidrográfico da Marinha Portuguesa, o que levou tantos cientistas e mergulhadores ali ao Gorringe, tão distante de tudo.

“Este é um sítio da Rede Natura 2000. É uma área designada como de protecção, só que não é protegida como tal”, salientou Emanuel Gonçalves. O objectivo da missão foi recolher informação sobre a biodiversidade do Gorringe, estudá-la, elaborar um relatório que deverá estar pronto até ao final do ano, para entregar às autoridades portuguesas, com recomendações para tornar efectiva a protecção daquele monte submarino — para desenvolver um plano de gestão.

“Esta já é uma é área marinha protegida na legislação portuguesa. Mas em termos de medidas de gestão, de conservação propriamente ditas, ainda estão a ser trabalhadas”, disse Marisa Batista, bióloga marinha do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), outro dos organismos promotores desta expedição. O Oceanário de Lisboa, o Ministério do Ambiente e Energia e a Marinha Portuguesa surgem ainda como co-promotores da iniciativa, na qual participaram cerca de quatro dezenas de entidades, portuguesas e internacionais.

“Queremos que o Gorringe faça parte da rede nacional de áreas marinhas protegidas e que tenha escala para contribuir para o objectivo de protecção de 30% do oceano até 2030”, adiantou Emanuel Gonçalves. “Temos objectivos internacionais acordados com a União Europeia e as Nações Unidas para 2030, o que é já amanhã. E o Gorringe é um sítio prioritário para Portugal”, concluiu.

A protecção eficaz do banco de Gorringe seria importante para esses objectivos. É a maior área marinha protegida da Rede Natura 2000, com cerca de 23 mil km2. Mas, recordou Marisa Batista, faz também parte do Complexo Geológico Madeira-Tore, com 197.431km2, entre o cabo de São Vicente e o arquipélago da Madeira, que foi uma das sete áreas Áreas Marinhas Ecologicamente ou Biologicamente Significativas do Atlântico Nordeste sob jurisdição portuguesa aprovadas em 2022, na conferência da Convenção das Nações Unidas para a Diversidade Biológica (COP15), no Canadá.

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O antigo bacalhoeiro levou três dezenas de cientistas para uma missão de exploração do banco de Gorringe em Setembro André Kosters/LUSA

Um paraíso de fotossíntese

Durante três semanas, em Setembro, o Santa Maria Manuela foi a base para esta expedição científica ao banco de Gorringe. Há equipamento de mergulho espalhado no convés de madeira escura, tapado do sol por um grande toldo branco. Movimento por todo o lado, pessoas com fatos de mergulho meio vestidos ou meio despidos. Uma sirene fura os ouvidos quando menos se espera. “Toca quando alguém faz asneira, e normalmente quem está a fazer asneira sabe que é consigo”, havia de explicar mais tarde Ana Hilário, cientista especialista em mar profundo da Universidade de Aveiro.

À volta, tudo azul, no céu e no mar. Estamos sobre o pico Ormonde, que vem até relativamente perto da superfície, 40 metros de profundidade.

“Os montes submarinos são hotspots de biodiversidade porque as espécies que só sobrevivem se tiverem uma zona onde se fixar normalmente não a encontram no meio do oceano. Mas aqui há substrato onde se agarrarem e chega muito perto da superfície”, explicou Ester Serrão, do Centro de Ciências do Mar da Universidade do Algarve (CCMAR), especialista em ecologia e evolução biogeográfica.

Por isso, o Gorringe, que emerge do fundo do mar ao longo de 200km, é como uma ilha, e forma um oásis debaixo do mar. Mas tem outras características que ajudam a torná-lo um local excepcional.

“Se estivéssemos junto à costa, a água teria muitos sedimentos, seria muito turva. Mas aqui é muito transparente”, diz Ester Serrão sobre o impossível azul que nos rodeia. “A luz penetra até uma maior profundidade [do que é comum], o que quer dizer que até aos 80 metros encontramos espécies que dependem da fotossíntese. Em zonas costeiras, só as encontramos até aos 20 metros de profundidade”, explicou, com o cabelo ainda um pouco húmido do mergulho subaquático que fez ao fim da manhã do dia em que o PÚBLICO visitou o Santa Maria Manuela.

“É habitual ver florestas de laminárias [algas castanhas] na costa portuguesa, onde a água é menos transparente. Mas aqui, num ambiente semitropical, com estas águas cristalinas, está tudo coberto por esta floresta de laminárias, é alucinante!”, diz João Franco, do MARE – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente no Instituto Politécnico de Leiria. É o que responde à pergunta sobre o que mais o marcou nos mergulhos que fez no Gorringe.

A montanha submarina é uma barreira que permite a inúmeros seres vivos fixarem-se, a transparência das águas permite a existência de organismos dependentes da luz do sol até maiores profundidades e há correntes frias que trazem do fundo para a superfície nutrientes que alimentam uma grande biodiversidade. “Se não houvesse aqui água fria e rica em nutrientes, não existiam florestas de laminárias”, explica João Franco.

Estas laminárias (também conhecidas como kelp) são folhas compridas e largas, de um verde-acastanhado, meio dourado, com aspecto de couro molhado, que os mergulhadores trazem para bordo do Santa Maria Manuela. “Esta deve ter sete ou oito anos, o que é bastante impressionante. Vivem no máximo 13 ou 14 anos”, mostrava João Franco, pouco depois de ter subido a bordo, ainda com o fato de mergulho.

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Algas laminárias são abundantes nos picos do Gorringe e servem de refúgio a muitas outras formas de vida Jordi Chias/Expedição Gorringe Fundação Oceano Azul

Como é que se sabe a idade das algas? “É como os anéis de crescimento de uma árvore”, diz. “Corta uma fatia fininha do caule, vira-a para o sol, estima-lhe a idade: cinco a sete anos.” Além de abundante, a população de laminárias no Gorringe parece estar em boas condições. “Nos Açores, há muitas espécies invasoras, aqui não vemos nada disso”, relata.

Escondidos nas algas

As laminárias são recolhidas metodicamente, tal como tudo o resto que está dentro de quadrados de terreno de 50cm x 50cm delimitados no topo dos picos do Gorringe. Isto permite encontrar mesmo as espécies muito pequenas, que escapam ao olho nu.

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João Franco corta uma fatia fininha do caule de uma alga para determinar a sua idade Fundação Oceano Azul

Com esta expedição, aumentou muito o número de espécies recenseadas no Gorringe — pelo menos 200, das quais mais de 40 não tinham sido ainda registadas nesta área, segundo o balanço provisório feito no final da expedição. “É uma amostragem sistemática, e é a primeira vez que está a ser feita. Fazemos uma abordagem mais qualitativa, estamos a ver tudo o que é mais interessante”, explicou Ana Hilário, investigadora do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar da Universidade de Aveiro.

Embora as algas não tenham verdadeiramente raízes, têm uma parte que se fixa ao monte submarino, cheio de fibras que se encaracolam como um cabelo revolto. Ali abrigam-se verdadeiras cidades de minúsculos outros seres: anémonas cor-de-rosa, camarões quase transparentes, múltiplos vermes.

Marco Frade, do Aquário Vasco da Gama, senta-se no convés do Santa Maria Manuela, com uma bacia de água branca aonde vão parar as laminárias recém-chegadas do mar. O que lhe interessa é esta parte de fixação, aquilo a que os cientistas chamam pseudo-raízes. Com um bisturi, uma pinça e uma visão de raio laser (usa óculos, mas deve ser para disfarçar a visão de Super-Homem!), descobre criaturas minúsculas e quase transparentes entre os fios daquela parte das algas.

É verdade que tudo aquilo se parece um pouco com as operações necessárias para comer uma sapateira, mas ele vai descobrindo anémonas (pontinhos pequenos cor-de-rosa), vermes poliquetas, um camarão-pistola (transparente ou pouco menos e do tamanho de uma lágrima, mas vê-se que tem uma das pinças muito maior, com a qual dá estalos supersónicos).

Ana Hilário estava ao lado dele, e ia pondo em pequenos tubos de ensaio os tesourinhos que Marco Frade ia descobrindo. Depois, ela e Duarte Frade, do CCMAR da Universidade do Algarve, sentados a um canto do salão Terra Nova (onde se tomam as refeições, e ficavam as concorridas máquinas de café, mas também o espaço comum onde ficam várias estações de trabalho no Santa Maria Manuela), espreitam estas criaturinhas sob o olho que tudo amplifica do microscópio electrónico.

“Tenho aqui uma coisa gira”, diz Ana Hilário. É um coral? Não. É um recife de minhoca! É uma ramagem branca que faz pensar num coral, pequenino. “Mas são tubinhos que têm um verme lá dentro, vêm espreitar cá fora”, conta.

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Marco Frade, do Aquário Vasco da Gama, tira com um bisturi seres minúsculos que se escondem nas raízes das algas para serem identificados ao microscópio André Kosters/LUSA

“Tecnologia do Star Trek!”

Apesar disso, nesta missão, os cientistas querem chegar à “biodiversidade escondida”, explicou Emanuel Gonçalves. Isto quer dizer ir além da diversidade de espécies que não se consegue distinguir apenas a olho nu, através das diferenças na forma, por exemplo. Além das técnicas de taxonomia, foram e serão usadas agora em laboratório técnicas de ADN para identificar e diferenciar espécies.

A análise de ADN ambiental é uma dessas técnicas, e Gabriela Borer, do Biopolis-Cibio, da Universidade do Porto, esteve a bordo do Santa Maria Manuela para o fazer. Tira água do mar que os mergulhadores trouxeram em sacos de plástico com um fecho e passa-a por um filtro. “Estou a recolher amostras para análise. Todos os organismos libertam pedacinhos de pele, cabelos, que têm ADN”, explica.

Este ADN será amplificado, sequenciado e comparado com bases de dados de sequências genéticas, para descobrir que seres vivos deixaram rasto de ADN naquela água. “Neste momento posso ter tudo aqui, baleias, tubarões, algas…”, comentou Gabriela Borer. “Isto é uma verdadeira tecnologia do Star Trek!”, brincou.

“Temos já centenas de espécies não estavam registadas. E isto é só o começo. Vamos avaliar as espécies que aqui estão para perceber se são mesmo o que estamos a pensar, ou outra, e se estão mais a Sul ou mais a Norte do que é habitual”, explicou Emanuel Gonçalves.

Sabe-se que a fauna do banco de Gorringe tem muitas afinidades, por exemplo, com a dos arquipélagos dos Açores. Mas há uma grande mistura. “Temos espécies mais do Sul da Madeira, e também do Minho. Temos aqui uma confluência de valores naturais extremamente interessante”, completa Emanuel Gonçalves.

“Isto é diferente de qualquer outro sítio no mundo, por causa da vegetação, dos peixes”, avança o fotógrafo subaquático Nuno Sá, que coordena uma equipa de multimédia cujo trabalho vai resultar num documentário sobre o banco de Gorringe – uma forma de dar a conhecer ao grande público aquele oásis submarino. A forma como descreve o que tem visto quase dava um título: “É uma espécie de Portugal tropical: vemos a flora habitual de Portugal, grandes florestas de kelp, plantas de águas frias, mas com peixes dos Açores e tropicais.”

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Um cardume dança para as câmaras dos mergulhadores Jordi Chias/Expedição Gorringe Fundação Oceano Azul

O mistério das raias grávidas

A maravilha de que toda a gente fala é das tremelgas, das raias eléctricas. “Em quase todos os mergulhos vemos estas agregações de raias eléctricas que não estão descritas para mais lado nenhum. Estão todas umas em cima das outras e são todas fêmeas grávidas”, contou Emanuel Gonçalves.

Como assim, raias grávidas? “Nesta espécie, as crias nascem já totalmente formadas”, explica Emanuel Gonçalves. Tal como os tubarões, seus parentes próximos, igualmente peixes cartilaginosos, e espécies ameaçadas, vítimas da sobrepesca.

As tremelgas têm uma longuíssima gravidez, à volta de um ano. Porque é que vêm para o Gorringe (e onde estão os machos)? Por ora, são perguntas sem resposta, mas os cientistas querem muito saber, porque é uma indicação de que o Gorringe é um berçário ou uma maternidade de espécies.

“As florestas marinhas de macroalgas, e de animais como corais e esponjas, são de uma grande diversidade e muito ricas aqui. Estas florestas tridimensionais criam zonas de abrigo, que se tornam berçários para muitas espécies”, explicou Ester Serrão. “Oferecem protecção contra predadores e alimentação, para que os juvenis possam crescer, sobreviver até ao estado adulto e partir para outros locais”, acrescentou.

Peixe junto a câmara subaquática, próxima de isco Expedição Gorringe Fundação Oceano Azul

Nos picos do Gorringe, os mergulhadores e os cientistas encontraram muitas espécies em estado reprodutivo. “Observámos mesmo a libertação de gâmetas [células sexuais]. As gorgónias roxas [corais], por exemplo, estão na fase reprodutiva”, contou Ester Serrão.

Alguns destes corais arroxeados, trazidos para bordo do Santa Maria Manuela com todas as cautelas, são mantidos vivos, num aquário provisório redondo, tapado por lona, no convés, que diz “cuidado, animais vivos”. Núria Baylina, directora de Biologia e Conservação no Oceanário de Lisboa, espreita lá para dentro.

As gorgónias foram trazidos na fase reprodutiva, porque o Oceanário tem um programa de reprodução e conservação de corais, que se iniciou com corais tropicais, em colaboração com a Universidade do Algarve, e está agora a começar a trabalhar com corais de água fria. O objectivo é ajudar à conservação destes animais que formam colónias e recifes que servem de abrigo para muitas outras espécies.

Tubarões desaparecidos

Mas, apesar de o Gorringe ser uma ilha de biodiversidade no meio do Atlântico, os cientistas viram claros sinais da sobreexploração da pesca. “Era expectável que, numa zona tão afastada como esta, houvesse grandes predadores, como os tubarões, e eles não estão cá”, contou Emanuel Gonçalves. “Os predadores de topo são um elemento fundamental das cadeias tróficas [alimentares], permitem que o ecossistema se mantenha saudável”, explicou.

Também não se viram meros, por exemplo, realça João Franco, do MARE. “Possivelmente, é efeito da pesca. Conheço pessoas que vêm para aqui fazer pesca desportiva. E não sabemos quantificar todo o impacto que tem a pesca comercial”, destaca.

“A sobrepesca é uma das principais ameaças para o Gorringe. O uso de grandes linhas que podem ter até 40 quilómetros de extensão e milhares e milhares de anzóis. Com o uso continuado e repetitivo destes métodos, não só os grandes predadores desaparecem, como essas linhas apanham a ‘pesca acessória’: aves marinhas, tartarugas-marinhas…”, frisou Emanuel Gonçalves.

A pesca excessiva ou não regulada tem impacto sobre espécies protegidas. “Temos de pôr em prática medidas para permitir que estas espécies sobrevivam e aumentem as suas populações”, adiantou.

O banco de Gorringe, com as suas florestas de laminárias e jardins de corais, está muito bem conservado, ao nível mais básico. Nem se vêem as espécies invasoras que assolam as águas do continente, dos Açores e da Madeira. “No continente, há uma competição em excesso das invasoras, que crescem por cima das nativas. Os Açores estão muito perturbados por invasoras. Este é um refúgio em que encontramos um ecossistema mais natural, parecido com o que terá sido a costa portuguesa, Açores e Madeira noutros tempos”, alerta Ester Serrão.

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Mergulhadores recolhem amostras nas encostas e picos do Gorringe Jordi Chias/Expedição Gorringe Fundação Oceano Azul

Mas isto não quer dizer que esteja intacto: “A parte basal do ecossistema está em muito bom estado, mas não estão cá os grandes peixes”, salienta a investigadora da Universidade do Algarve.

Berço da evolução

Proteger o ecossistema destes montes submarinos é, de facto, uma prioridade, explica, porque ao longo da vida na Terra, do avanço e do recuo dos gelos, as espécies que vivem na zona do Gorringe mantiveram-se estáveis. Quando os gelos recuaram na Europa do Norte, no fim da última glaciação, há cerca de 11.500 anos, foi daqui que partiram animais e plantas que recolonizaram zonas do planeta que se foram tornando mais amenas. “São populações antigas e, como tal, têm uma maior diversidade genética, porque nunca se extinguiram localmente, e evoluíram com adaptações locais”, explica Ester Serrão.

Isto é muito importante, numa altura em que a vida no planeta sofre um recuo avassalador – em apenas meio século, por exemplo, reduziram-se em 73% das populações de animais selvagens, segundo o relatório Planeta Vivo 2024 da World Wildlife Fund (WWF)

Raia nada por cima de uma floresta de algas Fundação Oceano Azul

“É imperativo proteger estes ecossistemas com populações muito antigas, com maior diversidade, porque têm um valor enorme de potencial recolonização de outras áreas. Se se perderem, desaparece a diversidade e o seu potencial evolutivo, que nunca se recuperará à escala das gerações humanas”, alerta a cientista da Universidade do Algarve.

Se se perderem as espécies do Gorringe, então, perde-se o tronco de onde saíram tantos outros ramos, os genes das espécies descendentes das que nasceram neste monte submarino e que partiram para colonizar outras costas.

O sítio de rocha nua

Um sítio no pico Ormonde explorado pela missão mostrou o que pode acontecer se algo correr muito mal naquela zona.

Quem começou por o contar foi Mariana Coxey, que é bióloga marinha, mas cujo trabalho, nesta missão ao Gorringe, se passou em grande parte numa sala cheia de computadores e cabos no interior do veleiro, a fazer análise e gestão de dados. Ela centralizou, compilou e processou os dados georreferenciados obtidos pela expedição e produziu os mapas com todas as componentes da expedição e toda a informação científica disponível para a área do Gorringe.

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A descoberta das raias grávidas no Gorringe é um dos grandes mistérios desta expedição Jordi Chias/Expedição Gorringe Fundação Oceano Azul

Mariana Coxey colabora com a Mardive (Associação Ciência e Educação para a Conservação da Biodiversidade Marinha), dedicada a promover a investigação, aprendizagem e acção para a protecção da vida marinha e dos ecossistemas. O seu trabalho serviu para escolher os pontos onde os mergulhadores deviam descer. Ou onde o ROV — o veículo de operação remota — da Universidade do Algarve deveria ser lançado para fazer explorações debaixo de água. O mesmo acontecia com os aparelhos chamados Lander e BRUV: equipados com microfones, câmaras subaquáticas e isco são mergulhados durante algum tempo para captar interacções com a fauna marinha, como lírios, tartarugas e golfinhos.

Mas nem sempre se acerta no sítio. Num raio de apenas 4km, encontraram locais muito diferentes no pico Ormonde. “Num havia imensos lírios [peixes], kelps incríveis”, contou. Noutro, havia grande abundância de corais, de gorgónias. Mas o terceiro local, onde a informação disponível levava a pensar que devia existir uma floresta de laminárias, o que os mergulhadores encontraram foi rocha nua.

“Tinha dito aos mergulhadores: ‘Deve ser lindo, cheio de algas.’ Mas, quando voltaram para cima, disseram-me: ‘É lindo, mas é só rocha. E há muitos ouriços’”, recordou Mariana Coxey.

“Algo aconteceu ali...” Um episódio de aquecimento anormal das águas que causou uma mortalidade excessiva é uma das hipóteses.

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Corais no Gorringe: alguns foram recolhidos para estudar a sua reprodução Jordi Chias/Expedição Gorringe Fundação Oceano Azul

No Gorringe há o fenómeno de upwelling, em que águas mais frias e ricas em nutrientes vêm das profundezas para a superfície. “A temperatura regula a biodiversidade, a dispersão das espécies”, explicou João Franco. A missão encontrou uma grande oscilação de temperaturas: à superfície, 20 a 22 graus, e mais em profundidade, 16 a 18, contou o biólogo marinho, entre mergulhos.

“A maior parte das estruturas dos picos do Gorringe está coberta de vegetação. Só num local se viu a rocha nua, e mesmo as gorgónias (corais) estavam mortas”, descreveu Ester Serrão. “Este ano, durante o pior período das ondas de calor [marinhas] as florestas de algas dos Açores desapareceram. Pode haver aqui uma relação”, avança a cientista da Universidade do Algarve.

Onda de calor?

“A água mais quente é menos densa, se a diferença de temperatura for grande com a camada mais fria e densa que está por baixo, pode criar-se uma barreira que impede a mistura das águas. As águas mais frias e ricas do upwelling podem não chegar ao topo. A barreira pode ter chegado a esse ponto e não chegarem nutrientes”, explica Ester Serrão. “É algo que pode ser uma grande ameaça aqui”, conclui.

Também pode haver outras explicações, igualmente relacionadas com um desequilíbrio do ecossistema. Naquela zona de rocha nua, onde deviam ter encontrado florestas de algas, havia muitos ouriços-do-mar. “Não sabemos porque havia tantos. Mas, se calhar, por ausência de predadores, devido à pesca excessiva, os ouriços, que são herbívoros, ganharam terreno”, avançou João Franco. “A verdade é sempre multifacetada.”

A verdade das montanhas do Gorringe ficou lá sob as águas, ainda mais fascinantes agora que começamos a levantar o véu do que da vida que lá existe. “Temos de voltar”, disse Ana Hilário, a especialista em ecossistemas de profundidade. “E temos de ir mais fundo: da superfície até ao mar mais profundo é um contínuo, não são coisas separadas”, frisa.

“Estamos a captar uma imagem de um momento no Gorringe. Mas temos de cá voltar, para ter continuidade”, sublinha a investigadora da Universidade de Aveiro. “As coisas que nos parecem extraordinárias hoje podem ser comuns aqui.”


O PÚBLICO viajou até ao Santa Maria Manuela a convite da Fundação Oceano Azul