Somos o país do fim da vergonha

Feitas as contas, somos um pequeno país de 92 mil km2 em que praticamente metade da população vive em duas grandes regiões urbanas, ambas no litoral, com todos os problemas que daí advêm.

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Somos um país de dez milhões de pessoas que tem quase três milhões a viver às portas de Lisboa, um valor que aumentou ligeiramente entre os Censos de 2011 e os de 2021. Na Área Metropolitana do Porto estão mais 1,7 milhões.

Feitas as contas, somos um pequeno país de 92 mil quilómetros quadrados em que praticamente metade da população vive em duas grandes regiões urbanas, ambas no litoral, com todos os problemas que daí advêm.

Estamos de costas voltadas para o interior, onde temos aldeias com dois, três, seis ou 30 habitantes, e grande parte deles viverá certamente num dos 470 mil alojamentos situados em áreas brancas (sem acesso à Internet), segundo dados da Anacom.

Recebemos imigrantes que fazem falta ao desenvolvimento económico e demográfico do país e cobramos-lhes impostos antes mesmo de lhes dar autorização de residência. Primeiro são contribuintes e só depois residentes.

Temos mais de 44 mil idosos que vivem sozinhos, isolados ou em situação de vulnerabilidade. Somos o país da solidão, mas também o da desigualdade, que vende T2 de 500 mil euros na capital e que registou, no ano passado, a percentagem mais alta da União Europeia em pobreza energética — 20,8%.

É justo dizer que já somos tudo isso, e ainda mais, há muito tempo. Mas, agora, somos também o país onde um deputado da nação eleito pelo Chega diz, na RTP3: “Se disparasse mais a matar, o país estava mais na ordem.” Isto a propósito de Odair Moniz, morador do Bairro do Zambujal que, na sequência de uma perseguição, foi alvejado mortalmente por um agente da PSP um caso que ainda está sob investigação.

Temos um jovem assessor parlamentar do mesmo partido que escreveu (e apagou) numa rede social: “Menos um criminoso, menos um eleitor do Bloco.” Como se as palavras não fossem sempre mais do que isso.

Vicente Valentim, doutorado em Ciência Política pelo Instituto Universitário Europeu, em Florença, escreveu um livro sobre esta normalização do discurso populista e radical que até aqui estava guardado na cabeça de alguns. Chama-se O Fim da Vergonha — Como a direita radical se normalizou.

Na sinopse do livro, lê-se que, embora essas ideias já existissem em privado, quem as tinha não se sentia “à vontade” para o manifestar em público “por causa da pressão social”.

Peço-lhe emprestado o título para terminar este editorial. Não somos o país que a maioria de nós (pelo menos dos que votam) quer ser. Somos o país do fim da vergonha.

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