Starmer e os pedidos de reparações históricas ao Reino Unido: “Não podemos mudar a nossa História”

Líderes de países caribenhos querem iniciar discussão na cimeira da Commonwealth, mas o primeiro-ministro britânico insiste na oposição do Governo a reparações financeiras pelo comércio de escravos.

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Cimeira da Commonwealth na Samoa termina no sábado Stefan Rousseau / VIA REUTERS
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O primeiro-ministro do Reino Unido não parece disposto a sucumbir à pressão de um grupo de países da região das Caraíbas que querem que a cimeira de chefes de Governo da Commonwealth (CHOGM), que começou na segunda-feira e que termina no sábado, na Samoa, sirva para abrir uma discussão formal sobre reparações históricas britânicas, por causa do papel do país no comércio transatlântico de milhões de escravos e na colonização de muitos dos membros da organização sucessora do Império Britânico.

Em declarações à BBC, Keir Starmer insistiu que o seu Governo e as actuais gerações reconhecem que “o comércio de escravos” levado a cabo pelo Reino Unido nas suas ex-colónias foi “hediondo” e lembrou que já foram feitos pedidos de desculpas em momentos anteriores. Mas mesmo assumindo que é preciso “continuar a falar” sobre o passado e a História do país, o primeiro-ministro afirmou: “Não podemos mudar a nossa História.”

Segundo Starmer, é preciso “olhar para frente, em vez de olhar para trás” e iniciar “discussões longas e intermináveis sobre reparações” e sobre o “passado” não responde a essa necessidade.

O político trabalhista garantiu ainda que as conversas que teve nos últimos dias com os representantes dos 56 países da Commonwealth, na Samoa, lhe mostraram que as prioridades da organização continuam a ser a luta contra as “alterações climáticas” e as “oportunidades apresentadas em termos de comércio e do crescimento” de todos os Estados-membros.

Esta sexta-feira, o rei Carlos III, que preside à Commonwealth desde a morte de Isabel II, em 2022, admitiu que os “aspectos dolorosos do nosso passado continuam a ressoar” em muitos países da organização.

Reparações não-financeiras?

Depois de a emissora pública britânica ter noticiado que os 15 países da Comunidade do Caribe (CARICOM) não estavam dispostos a ceder nas suas reivindicações relativas ao início de uma discussão sobre reparações, nomeadamente através de uma referência explícita nesse sentido no comunicado final que vai sair da CHOGM, uma fonte do Governo de Starmer admitiu ao Guardian, na quinta-feira, que poderia haver alguma abertura para “reparações não-financeiras”.

Aquelas incluiriam, por exemplo, restruturações de instituições financeiras, alívios de dívidas ou investimentos em programas educativos. Esta sexta-feira, porém, um porta-voz do primeiro-ministro excluiu essa possibilidade, dizendo que a posição do Governo britânico sobre reparações – “nós não pagamos reparações” – é “clara e também se aplica a outras formas de justiça reparadora não-financeira”.

Segundo os dados recolhidos pela Reuters, pelo menos 12,5 milhões de africanos foram sequestrados e vendidos como escravos por comerciantes europeus entre os séculos XV e XIX.

Depois de Portugal, que terá traficado perto de seis milhões de pessoas, o Reino Unido é o segundo país europeu que mais contribuiu para o comércio transatlântico de escravos, com 3,2 milhões de pessoas sequestradas e vendidas para trabalhos forçados, a maioria nas suas colónias nas Caraíbas.

“Chegou a altura de termos um diálogo verdadeiro sobre como responder a estes erros históricos. A justiça reparadora não é uma discussão fácil, mas é importante. Os horrores da escravatura deixaram uma ferida profunda e geracional nas nossas comunidades”, disse o primeiro-ministro das Bahamas, Philip Davis, à AFP.

“Ignorância cultural”

Apesar dos esforços e das iniciativas da Comissão de Reparações da CARICOM e de algumas reparações financeiras levadas a cabo pela Igreja de Inglaterra, pela Universidade de Glasgow, pela fundação NHS Lothian, pelo jornal Guardian ou pelo banco Lloyds, o Partido Conservador, que governou o Reino Unido nos últimos 14 anos, recusou sempre abrir um processo oficial de justiça reparadora.

Na oposição, porém, o Partido Trabalhista adoptou uma postura pró-activa, nomeadamente através de David Lammy, descendente de escravos, que em 2018 disse que “as pessoas caribenhas escravizadas, colonizadas e convidadas para o Reino Unido como cidadãos” conhecem “a sua história” e “não querem apenas um pedido de desculpas”, mas “reparações e compensações”.

Lammy é hoje ministro dos Negócios Estrangeiros do país e, também por isso, a CARICOM acreditava que um Governo trabalhista poderia estar mais disponível para iniciar este debate. Mas, aparentemente, não.

Citado pelo Guardian, Robert Beckford, teólogo e especialista em reparações históricas, diz que a posição irredutível assumida por Starmer revela “ignorância cultural”.

“É fundamental compreender as nuances entre reparações, que são jurídicas, e justiça reparadora, que é moral. É esta última que a CARICOM defende”, explica o académico. “Esta compreensão é fundamental para uma abordagem holística às reparações. É crucial perceber que, em muitas culturas, o passado e o presente estão profundamente interligados. A leitura errada de Starmer a este contexto cultural pode ter levado a uma demonstração de ignorância cultural.”

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