A memória da contestação à “lei russa” está viva entre os jovens georgianos

Durante meses, milhares e milhares de georgianos manifestaram-se contra a lei dos agentes estrangeiros, que acabou por ser aprovada contra os desejos de grande parte da população.

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Manifestação pró-europeia em Tbilissi a uma semana das eleições legislativas Irakli Gedenidze / REUTERS
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Nika Khomasurije ainda se recorda bem do dia em que encontrou a fachada do escritório da organização não governamental (ONG) para a qual trabalhava em Tbilissi, no início de Maio, coberta de posters e mensagens ameaçadoras. “Sede dos agentes”, “Agentes maricas”, “Revolucionários” e até “Bolcheviques” eram algumas das palavras escritas nas paredes.

Por esses dias, várias pessoas que lideraram os protestos contra a chamada “lei dos agentes estrangeiros” começaram a receber telefonemas anónimos em que eram insultados e houve alguns casos de espancamentos nas ruas da capital georgiana. Semanas depois, era aprovada a lei que obriga as ONG que recebem financiamento do exterior a declararem-se como grupos “ao serviço de potências estrangeiras”. O Governo do partido Sonho Georgiano (SG) declarava guerra à sociedade civil.

Nika, de 27 anos, foi um participante assíduo nas dezenas e dezenas de manifestações populares que ao longo de meses congregaram a contestação de grande parte da sociedade georgiana à lei, vista como um produto feito à imagem da Rússia de Vladimir Putin. “Vi gente com deficiência a preparar comida para os manifestantes, havia estudantes de Medicina que se organizaram para prestar cuidados médicos e funcionários públicos que estavam ao nosso lado de máscara para que não fossem reconhecidos”, recorda o jovem em entrevista ao PÚBLICO por telefone.

A batalha contra a lei dos agentes estrangeiros foi perdida. Meses e meses de protestos não conseguiram impedir que o Governo aprovasse a lei, mesmo depois de um veto presidencial e de vários avisos dos EUA e da União Europeia de que não viam com bons olhos uma legislação que vem pôr em causa o Estado de direito.

Nika decidiu então “continuar a lutar de uma forma diferente” e em Julho ajudou a fundar a Praça da Liberdade, um partido político composto essencialmente por pessoas sem passado na política com uma visão firmemente europeísta. Integra uma das coligações que se opõem ao SG nas eleições legislativas deste sábado. “Estas eleições são a nossa última oportunidade para manter a Geórgia no rumo europeu e impedir que o partido no poder nos leve para um futuro de tipo soviético”, afirma.

É difícil separar as eleições legislativas na Geórgia dos protestos maciços que agitaram ao país ao longo de vários meses contra a lei dos agentes estrangeiros. A aprovação deste diploma marca a deriva antiocidental do Governo do SG e para muitos georgianos as eleições deste sábado são sobre algo muito mais profundo do que a escolha de um novo parlamento.

“É um referendo entre a UE e a Rússia, não é uma eleição normal em que os partidos fazem campanha e competem para mostrar como vão melhorar a educação e coisas dessas”, observa Nika Khomasurije.

“Tudo depende das eleições”

Uma opinião semelhante é partilhada por Mariam Mikiashvili, conhecida por “Marika”, que também viveu intensamente o período de contestação à lei dos agentes estrangeiros. “Tudo na minha vida depende destas eleições”, diz, sem hesitar. Até 2022, Marika trabalhava numa ONG onde era responsável por um programa educativo para crianças, mas já na altura intuiu que a continuidade do SG no poder – onde está desde 2012 – estava a prejudicar o país e, por isso, decidiu juntar-se a um partido pró-europeu. “Percebi que, se não houvesse uma mudança imediata no país, então nada mais importaria, porque todas estas crianças iriam crescer e ir-se embora assim que pudessem”, explica.

Os números apoiam a preocupação de Marika. Entre 2022 e 2023, quase 250 mil pessoas abandonaram a Geórgia, grande parte das quais eram jovens até aos 30 anos que procuravam melhores condições de vida em países ocidentais. Um dos maiores receios é o de que o caminho da Geórgia rumo à adesão à UE esteja definitivamente comprometido por causa das políticas do SG.

Marika acredita que a aprovação da lei dos agentes estrangeiros acabou por abrir os olhos de grande parte da população para o carácter autoritário do partido dominante. “Há a compreensão absoluta de que eles são simplesmente nocivos para o país e que apenas irão trazer pobreza, estagnação, má reputação”, afirma.

A continuidade do SG no poder abre, segundo a jovem de 28 anos, duas perspectivas. “Se as sanções forem aplicadas e se o regime de isenção de vistos [para a UE] for revogado e a Geórgia ficar isolada, há a possibilidade de que o país se torne ingovernável para o SG”, explica. “Mas, se de alguma forma eles conseguirem manter o poder, então terão uma abordagem dura, que será uma mistura de [Aleksandr] Lukashenko na Bielorrússia e [Ramzan] Kadirov na Tchetchénia.”

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