Kevin perdeu a casa para a erosão costeira. Processou o Governo e perdeu a acção

Três queixosos processaram o Governo britânico pelos planos de adaptação às alterações climáticas serem “insuficientes”. Acusaram-no de violar os direitos humanos, o direito à habitação e aos bens.

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Operação de demolição de casas de férias no topo da falésia em Hemsby, em Inglaterra, decorreu em Dezembro de 2023 Christopher Furlong/Getty Images
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Kevin Jordan perdeu a sua casa em Hemsby, uma pequena vila do condado de Norfolk, leste de Inglaterra, devido à erosão costeira. Em Dezembro, as autoridades locais recomendaram que a casa fosse demolida por risco de cair no Mar do Norte. No início deste ano, juntou-se com Doug Paulley, um activista pelos direitos das pessoas portadoras de deficiência, para processarem o Governo britânico.

Os queixosos argumentaram que os planos do Governo para se adaptar aos impactos actuais e futuros das alterações climáticas, conhecidos como Programa Nacional de Adaptação (NAP3, sigla em inglês), eram insuficientes e ilegais. O Tribunal de Justiça (Royal High Court), em Londres, negou o seu pedido, noticiaram esta sexta-feira vários meios de comunicação britânicos.

Este programa foi aprovado pelo anterior governo conservador do Reino Unido, liderado pelo primeiro-ministro Rushi Sunak (que se demitiu do cargo em Julho), contendo medidas de adaptação às consequências das alterações climáticas entre 2023 e 2028. O plano prometia colocar o Reino Unido e outros países "na vanguarda dos esforços globais de gestão das alterações climáticas", como é possível ler no documento oficial.

Programa Nacional de Adaptação

O juiz Martin Chamberlain, que negou o pedido aos activistas, comentou em comunicado que, embora o governo anterior não tenha efectuado uma avaliação adequada do impacto sobre a igualdade, o resultado seria "muito provavelmente" o mesmo se o pedido fosse feito novamente.

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Demolições ocorreram dez anos depois da perda de cinco casas para o mar, em 2013, quando as tempestades minaram as fundações ao retirarem uma quantidade significativa de areia Christopher Furlong/Getty Images

O juiz também rejeitou os outros fundamentos da rede Friends of the Earth para contestar a legalidade da estratégia britânica, incluindo o facto de não ter conseguido mitigar o impacto das alterações climáticas nas pessoas com deficiência.

A Friends of the Earth, uma rede de organizações ambientais que dirige apoio jurídico a casos ligados ao meio ambiente, orientou juridicamente este caso e já reagiu assegurando que, independentemente da decisão, "o Programa Nacional de Adaptação é irremediavelmente inadequado e está a falhar com todos". A equipa jurídica da organização vai reavaliar os pormenores do caso e ponderar recorrer da decisão.

A decisão foi tomada na sequência de uma audiência realizada no tribunal em Julho, no qual Jordan e Doug Paulley argumentaram que cada um deles tinha sofrido danos resultantes da degradação do meio ambiente.

Em comunicado, Will Rundle, director do departamento jurídico da Friends of the Earth, defendeu que "é necessário e urgente apostar num plano de adaptação robusto e abrangente que nos proteja das tempestades, inundações e das ondas de calor cada vez mais graves, particularmente os grupos marginalizados, como os idosos ou as pessoas com deficiências, e os que vivem em zonas de maior risco devido às alterações climáticas".

O Ministério do Ambiente, da Alimentação e dos Assuntos Rurais britânico ainda não respondeu ao pedido de comentário da Agência Reuters.

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Nesta vista aérea, a estrada em The Marrams, na praia de Hemsby, começa a ser reclamada pela erosão marítima das dunas de areia Christopher Furlong/Getty Images

Jordan e Paulley: os rostos das consequências das alterações climáticas

Doug Paulley, activista dos direitos das pessoas com deficiência, sofre de vários problemas de saúde que foram agravados pelas altas temperaturas e ondas de calor sentidas no Reino Unido durante o Verão. As alterações climáticas são as responsáveis, alega.

Em 2022, o Reino Unido, comummente associado ao céu nublado e às chuvas constantes, registou o Verão mais quente de sempre, ultrapassando os 40 graus Celsius, segundo registou o Met Office, o serviço meteorológico do país.

Kevin Jordan, também ele portador de uma deficiência, perdeu a sua casa pouco antes do Natal. A erosão costeira, directamente relacionada com a subida da água do mar face ao degelo e às alterações climáticas, ameaça milhares de cidades costeiras agora mais susceptíveis a inundações e destruição das suas habitações.

Estes dois homens alegaram que a NAP3 era tão insuficiente que violava os direitos dos seres humanos à vida, à habitação e aos bens, e que tinham sido descriminados devido à sua situação de vulnerabilidade.

Em reacção ao veredicto, Kevin Jordan disse ao The Guardian que a decisão do tribunal é extremamente decepcionante. "Sem um conjunto de de políticas governamentais mais rigorosas para nos proteger, mais pessoas vão enfrentar o horror de ver as suas casas, vida e meios de subsistência ameaçados pelos impactos crescentes do clima em constante mudança", comentou.

"Já é suficientemente mau que as comunidades como a minha tenham perdido tanto devido à falta de previsão e planeamento dos efeitos previsíveis do colapso climático. Não quero que mais ninguém tenha de passar pelo que nós passámos. Mas, sem dúvida, muitos vão passar, a menos que o governo reforce os seus planos de adaptação", referiu Kevin Jordan ao The Guardian.

Doug Paulley também comentou a decisão ao jornal britânico. "O colapso climático ameaça-nos a todos, mas as pessoas com deficiência são desproporcionalmente afectadas e estão sempre entre os que suportam o peso quando ocorre uma catástrofe. A falta de protecção adequada no Programa Nacional de Adaptação significa que mais pessoas com deficiência vão sofrer e morrer à medida que as consequências das alterações climáticas piorarem", acrescenta o queixoso.

"Avós pelo Clima" e o próximo passo pela justiça climática

Esta acção baseou-se, em parte, na decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) em Abril. As "Avós do Clima", como ficaram conhecidas pelo mundo, processaram o governo suíço por não fazer o suficiente para combater as alterações climáticas, mais concretamente as ondas de calor que põem em causa a saúde de milhares de pessoas, em especial das mulheres idosas. E ganharam com uma decisão história do tribunal.

As "Avós do Clima" queixaram-se ao TEDH de violações ao abrigo dos artigos 2º e 8º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) - contra o direito à vida e contra o respeito pela vida privada, respectivamente. Acusaram a Suíça de não fazer esforços para reduzir as emissões de gases com efeito de estufa e dos tribunais suíços não atenderem aos seus pedidos jurídicos. O parlamento acusou o tribunal de "activismo judicial" e rejeitou a decisão do tribunal sobre a Suíça ter de fazer mais para mudar esta realidade. Porém, as Verein KlimaSeniorinnen Schweiz - as "Avós do Clima" - foram as únicas que tiveram uma decisão favorável do TEDH.

A Suíça é legalmente obrigada a cumprir com o acórdão aplicado pelo tribunal, nos termos da Convenção Europeia dos Direitos Humanos de 1974. Apesar de alguma resistência inicial, o executivo vai formular um relatório ao Comité de Ministros sobre as suas medidas de implementação e posição geral, como é exigido pelo tribunal. De acordo com a Rede Europeia de Implementação, quase metade dos principais acórdãos proferidos pelo tribunal na última década ainda estão pendentes de aplicação total, levando em média mais de seis anos.

A tentativa portuguesa

Em 2020, seis jovens portugueses acusaram 32 países de inacção climática. Seis jovens de Leiria e Almada uniram-se em 2017 depois dos incêndios devastadores de Pedrógão Grande e Mação e, com o apoio da Global Action Legal Network (GLAN), associação não lucrativa que fez o acompanhamento jurídico desde o início do processo, processaram os 27 países da União Europeia mais o Reino Unido, a Rússia, a Suíça, a Noruega e a Turquia - a Ucrânia chegou a estar indicada no processo, mas foi retirada após a invasão russa em 2022.

Ao TEDH, pediram reconhecimento pela violação de alguns direitos previstos na Carta Europeia dos Direitos Humanos como resultado da falta de acção contra o agravamento das alterações climáticas e da degradação do planeta. Em Abril deste ano, o Tribunal decidiu que o caso contra Portugal e os restantes 31 países era inadmissível. Ao PÚBLICO, Catarina Mota, uma das jovens envolvidas, garantiu "que isto não acaba aqui" e que depois de tantos anos de trabalho, o tribunal acabou por dar validade à luta climática.

Estas tentativas, independentemente do resultado, têm permitido aos cidadãos europeus entender que viver num ambiente limpo, saudável e sustentável é um direito que lhes pertence e que todas as nações devem cumprir.