Chiapas pior do que nunca

Numa viagem no México em busca da sua cultura, gente e natureza, era muita a curiosidade sobre o território de Chiapas, que, para nossa surpresa, encontrámos inundado num clima de medo e violência.

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No passado dia 20 de Outubro ficou manchada mais uma página da história sangrenta do México. Na manhã deste dia foi assassinado o padre Marcelo Pérez, pároco da Igreja de Guadalupe de San Cristóbal de las Casas, em Chiapas, reconhecido e amado pelo seu incessante trabalho de apoio a comunidades indígenas e campesinas, bem como pelas suas destemidas denúncias da violação dos direitos humanos. Esta tragédia não é isolada e é o reflexo do estado de ingovernabilidade de Chiapas e do México, que há muito permite que os interesses de grupos criminosos e actores violentos se sobreponham à paz e à justiça.

No estado de Chiapas encontra-se mais de 40% da biodiversidade de todo o México e uma população de aproximadamente 5,5 milhões de pessoas. Na sua grande maioria são indígenas e camponeses que sobrevivem em pobreza, com fraco acesso a serviços básicos de saúde, educação, habitação e água.

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Paroquianos assistem ao enterro do padre Marcelo Perez, que foi assassinado no domingo em San Cristobal de las Casas depois de celebrar uma missa, em San Andres Larrainzar, no estado de Chiapas, no México, a 22 de Outubro de 2024 REUTERS/Gabriela Sanabria

No final do séc. XX, da insatisfação do povo com as políticas públicas que desconsideravam a realidade das comunidades indígenas, nasceram organizações e movimentos autónomos, como o EZLN (Exército Zapatista de Libertação Nacional), que se insurgiram em busca de democracia e justiça social. A esta revolta o governo respondeu com uma violenta guerra armada e uma forte militarização por todo o território chiapaneco. A guerra terminou passados alguns meses mas a militarização ficou.

Nos últimos anos a situação tem-se tornado mais complexa, com o aumento da presença de grupos armados narcotraficantes, paramilitares, de autodefesa, bem como de militares e guarda nacional, originando uma escalada de conflitos e violência sem precedentes.

Sobre este panorama de insegurança, o cessante Presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, negou que o ambiente de violência tenha as dimensões registadas pelas associações de direitos humanos, chegando mesmo a afirmar que estas procuram ampliar o problema.

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Membro da Guarda Nacional vigia as ruas em Tila, estado de Chiapas, México, depois de as pessoas terem fugido da violência de gangues armados, a 12 de Junho de 2024 REUTERS/Jacob Garcia

Contudo, o que nós vimos foi muito diferente.

Clima de insegurança

Percorrendo as montanhas dos Altos de Chiapas e trabalhando de perto com uma organização de direitos humanos, apercebemo-nos de que ali se vive o medo. Em muitas comunidades escutam-se diariamente confrontos entre grupos armados e entre tiroteios cruzados teme-se a chegada de uma bala perdida.

A população vive num estado de alerta e vê-se permanentemente sujeita ao stress provocado pela insegurança pessoal, da sua família e da restante comunidade. As estradas são sucessivamente bloqueadas pelos diversos grupos que impõem restrições na circulação, limitando o quotidiano de quem ali vive. A chegada ao destino é incerta, as pessoas são muitas vezes obrigadas a voltar para trás, algumas não chegam sequer a sair de casa, perdendo a oportunidade de colher alimentos, de ir trabalhar, de participar em assembleias ou visitar familiares.

A violência acaba por forçar famílias a abandonarem as suas casas e terras, que são saqueadas e queimadas. O deslocamento forçado tem sido uma constante na história de Chiapas, contudo, nos últimos anos, tem havido um aumento significativo devido à escalada de conflitos. Infelizmente para muitas famílias, este não é um episódio isolado, no passado já sobreviveram a situações semelhantes que as obrigaram a largar tudo e a encontrar um novo lugar para viver. A população despojada enfrenta condições de extrema vulnerabilidade no que diz respeito à sua saúde, habitação e alimentação, ficando em causa a sua integridade física, psicológica, comunitária e cultural. Para trás ficam aldeias vazias que são ocupadas pelos grupos armados numa perspectiva de domínio e apropriação do território.

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Uma mulher segura um cartaz onde se lê: “Não à violência” durante uma peregrinação de pessoas deslocadas de Tila, que deixaram a sua cidade devido à violência de gangues armados REUTERS/Jacob Garcia REUTERS/Jacob Garcia

Grupos armados

Ao crime organizado interessa tomar o poder territorial, social, político e económico desta região, que abrange a fronteira com a Guatemala, para assim controlar as rotas de imigração, narcotráfico e contrabando. Além de espalhar a violência e o terror pelas comunidades, sujeita a população a recrutamentos forçados para servir os interesses criminosos.

No final do mês de Agosto, na zona de Frontera Comalapa, foram denunciados sequestros, assassinatos e ameaças perpetuados por cartéis de narcotráfico. De duas comunidades diferentes foram levados à força cerca de 60 homens e as populações ameaçadas de iminente novo sequestro dos mais jovens. Na mesma altura, cerca de 30 comunidades ficaram sem habitantes, que, no meio de um cenário de violência, procuraram refúgio noutras localidades e casas solidárias da Igreja.

Nas últimas semanas têm sido denunciados ataques, invasões e cercos levados a cabo por grupos paramilitares em diversas comunidades zapatistas que vivem em paz há 30 anos, com o intuito de intimidar e despojar a população, com a conivência do poder local.

A população não encontra protecção na polícia ou guarda nacional, perdeu a esperança no governo e não acredita que este encontre um caminho para a paz. Em alternativa, elementos de algumas aldeias organizam-se em grupos de autodefesa armados para proteger as suas comunidades. Estas dinâmicas acabam por criar mais tensão, enfraquecem a coesão social e a força comunitária e contribuem para a escalada de conflito.

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Um soldado vigia o exterior de um ginásio que está a ser utilizado como abrigo para pessoas que fogem da violência de gangues armados, em Yajalon, estado de Chiapas, México, a 12 de Junho de 2024 REUTERS/Jacob Garcia

Megaprojectos

Por sua vez, ao poder político e às multinacionais parece interessar a presença do crime organizado que desintegra as comunidades e os movimentos sociais opositores a megaprojectos, ao mesmo tempo que legitima a forte permanência de militares e guarda nacional.

No município de Chicomuselo, em 2009, a população organizada conseguiu encerrar as minas exploradas pela empresa canadiana Blackfire. Nesse mesmo ano o principal líder activista do movimento, Mariano Abarca, acabaria por ser assassinado. Quinze anos depois, no final do ano passado, reabriram-se as minas numa altura em que os cartéis intensificaram a sua presença na região, espoletando novos conflitos armados, face a uma total passividade dos militares e guarda nacional. A maioria dos habitantes das comunidades mais próximas viu-se forçada a abandonar as suas casas e a desistir da luta contra a mineração num acto de sobrevivência.

Além da mineração, Chiapas é um estado muito cobiçado para o desenvolvimento de megaprojectos com elevado potencial económico nomeadamente agrocomerciais, energéticos e de turismo. Estes projectos acarretam contudo elevadas consequências para a população local por implicarem apropriação de terras, desalojamentos e desintegração das comunidades, assim como impactos irreversíveis nas paisagens e ecossistemas. No âmbito da implementação destes projectos, as comunidades vêem a sua voz ignorada e geram-se movimentos de oposição. A contestação é muitas vezes reprimida com detenções arbitrárias com o objectivo de romper o tecido social, criminalizando a contestação para mostrar uma imagem distorcida dos activistas e intimidando a população para desencorajar que brotem novos processos de solidariedade e organização. Aos activistas são impostas sentenças de dezenas de anos, que por vezes são revertidas por mérito da pressão da sociedade civil e da luta das organizações de direitos humanos.

Pior do que nunca

Durante o tempo que por lá caminhámos escutámos comunidades indígenas, zapatistas e de outras associações falarem sobre o clima de tensão que se vive nas várias zonas, alguns referindo como sendo o momento mais crítico desde sempre, Chiapas pior do que nunca.

Ali vive-se um total desrespeito pelo direito de ser humano, de ter liberdade de escolher uma cultura e religião, de ter habitação e de viver na terra dos seus avós, de ter direito à memória, à vida em comunidade, à saúde, à dignidade, justiça, educação, alimentação, água potável, ao direito de ter voz e de viver em paz.

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Um soldado ajuda pessoas a fugir da violência de gangues armados, em Tila, estado de Chiapas, México, a 12 de Junho de 2024 REUTERS/Jacob Garcia

Se hoje Chiapas sobrevive é porque quem lá vive tem um sentido de vida comunitária, de autonomia e entreajuda, de resistência e luta pelo seu território e cultura. A população organizada vai além da contestação, é esperança e é alternativa a um Estado que se mostra distante e ausente.

Nesta quinta-feira, 24 de Outubro, marcha-se na principal praça da Cidade do México, em frente ao edifício do governo nacional, exigindo justiça, responsabilização e o fim da violência.

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