Herman José: “Marco Paulo está para a música popular como Amália para o fado”

Herman José concorria com Marco Paulo e depois caricaturou Marco Paulo num dos seus bonecos mais conhecidos. “Uma voz absolutamente excepcional” que não achava muita piada a Serafim Saudade.

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O Marco Paulo começa antes de mim. Quando eu me inicio nas lides artísticas — a Canção proibida, o primeiro grande êxito dele, é de 1978 —, éramos concorrentes de espectáculos. Respeitávamo-nos todos, mas havia uma certa concorrência entre mim e o Marco Paulo, o José Cid, a Tonicha — uma pequena aristocracia de primeiro plano, em que estes nomes se digladiavam na conquista do mesmo mercado. Depois, com a passagem do tempo, as carreiras crescem, nós amadurecemos e a relação passa a ser muito mais distendida e muito mais simpática.

O 25 de Abril encostou à box todos os cantores comerciais da altura do Estado Novo. O Artur Garcia, a Simone de Oliveira, que depois recuperou espaço, a própria Amália, caída momentaneamente em desgraça ao tentarem acusá-la de ter pactuado com o regime. Mas o público estava ansioso de voltar a ter música comercial. Como o Marco Paulo não tinha muita visibilidade antes do 25 de Abril — andava pelos círculos e festas populares como segunda e terceira figura —, foi relativamente poupado. Quando ressurge em 1978, com a Canção proibida, ele vem ocupar o espaço dessa canção acusada de “nacional-cançonetismo”. Municiado por uma voz absolutamente excepcional, todas as versões que ele fez — os seus êxitos são todos versões — são sempre melhores do que o original. É um cantor internacionalmente notável, mas num país inquinado por complexos culturais sobre o que era chique, no princípio dos anos 1980 o Marco Paulo era visto como piroso.

Claro que eu, como humorista, o tive como um dos focos das minhas caricaturas, como aconteceu também com outros colegas. E as brincadeiras, quando nos tocam a nós… muitas vezes não lhes achamos graça. Ele ficou um bocadinho sentido quando eu fiz, com o Carlos Paião, o Serafim Saudade. A certa altura dissemos-lhe que não era ele, que era o Dino Meira. Ele fingiu acreditar.

O Paião era um caso de talento muito sério e essa personagem, ao longo dos 12 programas que fizemos [de Hermanias, em 1984], interpretava músicas que tinham pontos de apoio em músicas conhecidas, não necessariamente do Marco Paulo... mas sabíamos que uma delas era parecidíssima [com uma cantiga sua]. Ele não achou muita piada. O próprio fato do Serafim Saudade é apenas uma homenagem aos fadistas da altura. A personagem é uma espécie de cooperativa de artistas, dos quais o Marco Paulo era de alguma forma a cara principal, sobretudo por causa dos caracóis. A coisa foi de tal maneira que ele, passado uns tempos, acabou por os cortar. Estava farto de que fizessem comparações com o Serafim Saudade. E, sim, o microfone que passa de mão para mão é totalmente Marco Paulo.

Agora, na fase final, aproximei-me bastante dele, cheguei a ir ao seu programa de sábado na SIC, porque fiquei com imensa compaixão perante aquela luta desigual contra a doença. Luta que, apesar de tudo, ele travou com uma doce inconsciência sobre o verdadeiro estado da sua saúde, ajudado também pela fé. Havia um manto diáfano, algum entusiasmo, a esperança no milagre.

Ele está para a música popular como Amália está para o fado, como o Zeca Afonso está para o cantautor. Na área dele é, sem dúvida, um líder absoluto que fica para a história.

Testemunho recolhido por Joana Amaral Cardoso

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