Tejo deixará de ter dias de “caudal zero” no maior acordo sobre a água desde a convenção de Albufeira

Cimeira Ibérica de Faro quer mostrar que o clima de alinhamento se mantém apesar de alteração do governo em Portugal. Uma dezena de acordos estão previstos, a maioria sobre a água.

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Alcoutim terá finalmente assegurada uma ponte com a vizinha Sanlúcar de Guadiana Duarte Drago
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“Empenho mútuo na gestão partilhada dos recursos hídricos”, é assim que portugueses e espanhóis introduzem um acordo que descrevem como “histórico” e que permite mudar o paradigma dos rios Tejo e Guadiana. O encontro entre os governos de Portugal e Espanha, desta quarta-feira, em Faro, vai permitir acabar com os dias em que água não corria para Portugal no principal rio da península, o Tejo. Ainda assim, fora do acordo entre Estados ficam os também transfronteiriços Douro ou Minho.

Num horizonte de escassez na península ibérica, este acordo ganha especial relevância para Portugal, cumprindo os 25 anos do último grande tratado sobre a água entre os dois países: a Convenção de Albufeira – isto numa altura em que o clima da Península Ibérica ainda não era afectado com as alterações climáticas como é hoje.

A promessa firmada em acordo nesta quarta-feira vai assegurar "caudais mínimos diários no rio Tejo, caudais ecológicos no rio Guadiana e o pagamento da água do Alqueva pelos agricultores espanhóis que a utilizem". Esta foi uma das bandeiras do primeiro-ministro, Luís Montenegro, no discurso de encerramento do congresso do PSD, no último domingo, em Braga.

Ficam assim, previsivelmente, afastados os tempos de um Tejo que se chegava a confundir com um ribeiro nos meses de Verão, quando a chuva não caía e Espanha retinha ao máximo a água nas suas barragens. Portugal vai também poder passar a ir buscar água ao Guadiana na zona do Pomarão, para abastecimento do Algarve.

Previstos uma dezena de acordos

A declaração final da cimeira só será acertada nesta quarta-feira, mas o PÚBLICO apurou que serão assinados cerca de uma dezena de acordos entre os dois países, com pouca margem para grandes surpresas de última hora.

Na albufeira do Alqueva e zonas do Guadiana em que as duas margens pertencem a países diferentes, haverá um acordo sobre “segurança da navegação náutica de recreio e pesca”, depois de anos em que eram constantes os problemas com as embarcações de um e de outro país que ultrapassavam a linha de fronteira situada a meio do curso do rio. Os dois países querem também unir esforços em Bruxelas para a criação da Agenda Europeia da Água, no âmbito da Estratégia Europeia para a Resiliência Hídrica.

Para além destes avanços, o PÚBLICO apurou que serão alcançados acordos na área da pesca, segurança da navegação e conservação do património natural. Ambos os governos vão também lançar um prémio comum, conhecido pelo nome dos navegadores que fizeram a primeira volta de circum-navegação ao globo terrestre: Fernão Magalhães e Juan Sebastían Elcano.

O prémio vai ter como objectivo reconhecer pessoas, empresas, projectos, instituições e outras entidades “que se tenham destacado no trabalho de aproximação entre Portugal e Espanha, designadamente através da cooperação e intercâmbio entre os dois países”. O prémio quer reconhecer pessoas e instituições em áreas tão diversas “como a ciência, a investigação, a educação, a construção europeia, a globalização para o desenvolvimento sustentável, desenvolvimento territorial e cooperação no domínio transfronteiriço”. Ao que o PÚBLICO apurou “será dada especial atenção a iniciativas ligadas à protecção e promoção dos oceanos e do meio marinho”.

Da parte das organizações ambientalistas surgem já críticas ainda antes do papel firmado. A portuguesa Zero defende que os caudais diários "não são suficientes" e que é necessário “garantir a saúde dos ecossistemas fluviais através de caudais adaptados à dinâmica natural dos rios”. Para além disso, há lamentos de que o acordo "devia abranger" os outros rios transfronteiriços. Os ambientalistas também pedem a reactivação do comboio Lisboa-Madrid que está, para já, longe dos planos dos dois países à espera que cheguem os tempos da alta velocidade.

Ainda que faltem comboios entre os dois países - resumidos hoje a ligações próprias do século passado, em serviços lentos e sem as mínimas condições para os passageiros - e que haja sítios da raia que vivam de costas voltadas, a esperança de reforço de ligações nasce sob a forma de duas novas pontes. Alcoutim e Montalvão (no concelho de Nisa) passam a ter Espanha mais perto.

Em Montalvão resolve-se um problema digno de anedotário: a fronteira que só abre aos fins-de-semana, quando a Iberdrola, empresa gestora da barragem de Cedilho, diz haver condições de segurança necessárias para o trânsito. A volta de mais de uma centena de quilómetros fica finalmente resolvida, depois de décadas de dois povos separados por uma albufeira de barragem e por lamentos de viver nas margens da última fronteira privada da Europa.

Mais a sul, em Alcoutim, aproximam-se duas vilas que vivem “como duas irmãs gémeas”, como descrevera Saramago quando por ali passou durante a escrita de “Viagem a Portugal”. A vila vive a duas dinâmicas: entre os que desejam a nova ponte e os que receiam que a nova ligação traga mais isolamento, levando a que a gente que por ali passa não se quede no fim da estrada para apanhar um barco e que passe a toda a velocidade para o país vizinho na nova estrada. Ambas as pontes são financiadas com dinheiro do Plano de Recuperação e Resiliência.

De Espanha há também a convicção de que poderá haver avanços nas datas das ligações internacionais de alta velocidade, nomeadamente na ligação que Portugal tem num segundo plano: a linha Lisboa-Madrid, onde se incluiu uma terceira ponte sobre Tejo na região de Lisboa. Não deverá ser um processo difícil, já que o governo se alinhou com Carlos Moedas e Isabel Díaz Ayuso na reivindicação de um comboio de alta velocidade entre as capitais dos dois países, em "igualdade" para com a ligação Porto-Vigo. O responsável espanhol com a pasta dos transportes, Óscar Puente, garante que a parte espanhola teria alta velocidade pura até 2030, mas neste momento está ainda pendente a definição da solução a adoptar entre Talavera de la Reina e Toledo, na região de Castela-La Mancha.

Também a Galiza e o norte de Portugal esperam avanços no que toca à definição de prazos concretos para a ligação a Vigo. Neste momento o horizonte para esta ligação é 2032, sendo impossível a construção da linha a tempo do mundial de futebol que une os dois países, juntamente com Marrocos, em 2030.

Como prova da vontade de continuar a reforçar as boas relações entre os dois países, na próxima quinta-feira vai ser assinada a Iberian Space Partnership entre a operadora portuguesa de satélites de observação da Terra (GEOSAT) e a empresa espanhola SATLANTIS, espacializada no fabrico de câmaras para satélites. A meta é lançar um satélite precursor para a Constelação Altântica, um conjunto de 16 satélites para vigiar florestas e oceanos, levando a cooperação entre os dois países também para a dinâmica espacial.