Paul Lowe (1963-2024), o fotojornalista que olhou para o outro lado de Sarajevo

Estudou História e, enquanto fotojornalista, via-se como um “historiador na linha da frente”. As fotografias de Sarajevo durante o cerco de 1992 a 1996 são um “testemunho do quanto amava a cidade”.

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Paul Lowe nasceu a 6 de Novembro de 1963, em Londres, e cresceu em Liverpool Amra Abadzic Lowe/Instagram da VII Foundation
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Durante o cerco de Sarajevo, entre 1992 e 1996, Paul Lowe fotografou, num primeiro momento, o conflito em si: as mortes, os feridos em camas de hospital. Tempos depois, a lente mudou de direcção, passou a preocupar-se “com o que se passava com as pessoas comuns, quando reduzidas a condições medievais”, disse ao jornal britânico The Guardian em 2022. Foi esse trabalho que mudou tudo: o olhar, o pensamento, até a morada — passou a viver entre Londres e Sarajevo. O fotojornalista britânico morreu no dia 12 de Outubro, aos 60 anos, perto de Los Angeles, vítima de esfaqueamento.

O filho de 19 anos, Emir Abadzic Lowe, foi acusado de homicídio. O jovem estava há meses nos Estados Unidos, apesar de ter dito aos pais que ficaria apenas alguns dias no país. Paul Lowe viajou para convencer o filho a voltar para o Reino Unido e parecia estar a resultar — enviou uma mensagem à mulher minutos antes do esfaqueamento onde escreveu que Emir parecia “calmo”, contou Amra Abadzic Lowe ao New York Times. “Enquanto pais, sentimos que o podíamos ajudar. Nunca esperámos este desfecho.” Emir lidava com problemas de saúde mental e tinha estado várias vezes internado no último ano devido a ataques psicóticos.

Paul Lowe nasceu a 6 de Novembro de 1963 em Londres e cresceu em Liverpool. Licenciou-se em História e Filosofia na Universidade de Cambridge e trabalhou em mais de 80 países como fotojornalista, entre os anos 1980 e 2000. E, apesar de não ter seguido intencionalmente o caminho de “fotógrafo de guerra”, a altura em que exerceu a profissão levou-o por aí. Fotografou a queda do Muro de Berlim e num vídeo gravado em 2019 para a London College of Communication (onde dava aulas actualmente) conta que parecia que dali para a frente o mundo seria um lugar “de doçura e luz e irmandade e unidade”.

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O fotojornalista britânico num festival de fotografia na Pristina, Kosovo, em 2023 Konstantinos Zilos/NurPhoto, via Getty Images
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Um criança brinca ao lado de uma armadilha para tanques, Paul Lowe considerou esta a sua melhor fotografia Paul Lowe

Mas isso não aconteceu. Depois da queda do Muro “aumentou o número de conflitos intensos de pequena escala” e, enquanto fotógrafo, interessava-lhe perceber (e retratar) “o que acontece a pessoas comuns em situações extraordinárias”. Os conflitos representavam essa máxima levada ao extremo. Cada fotografia tirada em Sarajevo é “um testemunho do quanto ele amava a cidade”, escreveu Kenneth Morrison, professor na Universidade de De Montfort e amigo de Paul Lowe, no Balkan Insight. Os retratos “meticulosos” da vida quotidiana são mais do que um documento histórico. “Enquanto nós perseguíamos as notícias, ele captava o tecido da vida na cidade. Nós construímos castelos de areia, ele construiu algo permanente”, disse a Kenneth Morrison ojornalista da BBC Allan Little, que também cobriu o cerco de Sarajevo.

Uma criança brinca na rua com uma bola, ao seu lado está uma cruzeta de metal — é uma armadilha para tanques. Paul Lowe disse ao The Guardian que é essa a sua melhor fotografia. “Captei a bola a ser atirada ao ar, como se fosse em qualquer outra rua do mundo. É uma coisa tão banal para uma criança, mas isso acontece ao lado de uma armadilha para tanques, um sinal do perigo sempre presente.”

Para além de Sarajevo, Lowe fotografou o genocídio no Ruanda, a guerra na Tchechénia, entre muitos outros países em conflito, e tornou-se um nome respeitado na fotografia documental. O dilema ético era constante nessas alturas — o que devia mostrar e qual era a melhor forma de o fazer, como devia relacionar-se com os lugares e com as pessoas que fotografava. Depois da incursão pelo fotojornalismo, voltou-se para a academia para pensar e aprofundar questões como estas. Em pouco tempo, o mestrado em Fotografia Documental que leccionava na University of Arts London (UAL) tornou-se uma referência no meio.

Um civil ferido após um ataque da Rússia em Dezembro de 1994 Paul Lowe
Pegadas e sangue na neve, fotografado em Dezembro de 1994, na Chechénia, após um ataque russo Paul Lowe
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Um civil ferido após um ataque da Rússia em Dezembro de 1994 Paul Lowe

Jeremy Bowen, também jornalista da BBC que passou temporadas em Sarajevo durante o cerco, diz sobre Paul Lowe: era “encantador, muito talentoso e empático”. Bowen enfatiza esta última qualidade, que não só é “parte vital do melhor tipo de jornalismo”, como “deve tê-lo ajudado enquanto professor, a formar a próxima geração de fotojornalistas”. A julgar pelos comentários e testemunhos que se sucederam à morte de Lowe, esta hipótese parece confirmada. “Ele mudou a minha vida”; “Levarei sempre os seus ensinamentos e estarei sempre grato por tudo o que o professor Lowe fez por mim”; “As aulas que dava eram transformadoras e o coração estava muito visível no seu trabalho e orientação (...), era um grande exemplo de humanidade”, são alguns dos testemunhos que se podem ler por baixo de uma nota de pesar publicada na conta de Instagram da VII Foundation, organização que forma fotojornalistas de comunidades pouco representadas nos media e da qual Lowe fazia parte.

O fotojornalista britânico ganhou seis prémios da World Press Photo: em 1993, 1995, 1996 e 2001. Em 1999, recebeu o Prémio Vic Odden da Royal Photographic Society. Como se tira uma boa fotografia? Em entrevista ao The Guardian, deu várias pistas: “Deixa o objecto respirar, deixa que a situação se desenrole. E pensa sobre a forma como as escolhas estéticas que fazes contribuem para o significado da fotografia.” Por outro lado, as imagens têm um propósito: numa fotografia sua em que se vêem os pés de uma mulher por baixo de um lençol numa morgue em Sarajevo destacam-se as unhas pintadas — um “pequeno acto de resistência”, disse Lowe ao jornal britânico.

“Da última vez que falámos, na semana passada, estivemos a discutir ideias e a fazer planos”, recorda Kenneth Morrison — “ele estava tão entusiasmado e dinâmico como sempre.” O trabalho de Paul Lowe permanecerá “importante, tanto para aqueles que o conhecem como para quem ainda o vai descobrir”. Mais do que do fotógrafo e académico, Kenneth Morrison garante que quem privou com Paul Lowe sentirá a falta de uma pessoa “que, quando entrava numa sala, a tornava um sítio melhor”.

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