Doença mental e violência: é tempo de combater a desinformação

É particularmente chocante a participação de profissionais de saúde neste espetáculo mediático para comentar casos concretos que clinicamente desconhecem.

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Apesar de vivermos num país com baixos níveis de criminalidade violenta, assistimos a uma exploração mediática desproporcionada dos casos que existem. As situações de crime violento são sistematicamente apresentadas de forma sensacionalista e com associações diretas ou indiretas a doenças psiquiátricas como a esquizofrenia ou a depressão.

Esta dinâmica comunicacional – gerada tanto nas redes sociais como nos meios de informação tradicionais – contribui para perceções de insegurança que são desproporcionadas em relação aos riscos reais e acentua o estigma e a discriminação das pessoas com doença mental, com consequências nefastas para as suas vidas e para a toda a sociedade.

Em Portugal, a maior parte das notícias associa informação alusiva à saúde mental a assuntos sobre justiça, crime e violência, de acordo com um estudo recente do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa. Além das notícias, também os programas de entretenimento das manhãs e tardes dedicam longos períodos à análise de casos de violência com permanentes e, muitas vezes inusitadas, associações a questões de doença mental.

Um estudo realizado nos Estados Unidos da América em 2014 concluiu que os casos de violência com armas associados a doença psiquiátrica representavam 4% dos crimes violentos ocorridos naquele país. Apesar de pelo menos 25% das pessoas viverem com um problema de saúde mental, o número de crimes atribuíveis a fatores relacionados com a doença é reduzido. Em sentido contrário, viver com uma doença mental constitui um fator de risco para ser vítima de um crime.

Embora os tempos convidem à produção e ao consumo continuado de quantidades de informação em massa, a análise de questões tão complexas – como criminalidade e saúde mental – não pode fazer-se ao ritmo das notícias, com base em testemunhos imprecisos, informações truncadas e suposições tantas vezes infundadas. Neste domínio, é particularmente chocante a participação de profissionais de saúde neste espetáculo mediático para comentar casos concretos que clinicamente desconhecem.

Também é particularmente representativo do estigma das doenças mentais que alguns comentadores televisivos não se coíbam de fazer afirmações sobre questões técnico-científicas como a necessidade de um tratamento específico ou de um internamento em determinada situação. A forma como veem a doença psiquiátrica é profundamente estigmatizante e contrastante com todas as outras doenças. Basta imaginar como seria profundamente descredibilizante se sugerissem num desses programas que uma perna fosse operada com a técnica cirúrgica A em vez de B.

A associação entre doença mental e violência gera medo, gera vergonha, gera discriminação, gera incompreensão, gera maior resistência à procura de ajuda profissional, gera menor adesão aos tratamentos, gera sofrimento e gera mais problemas e dificuldades para todos e, em particular, para as pessoas que vivem com estas doenças e as suas famílias.

Atendendo às consequências nefastas da perpetuação destas associações, seria importante que os órgãos de comunicação social e as entidades que os regulam promovessem a adopção de práticas socialmente responsáveis, à semelhança do que já acontece na divulgação de informações acerca dos casos de suicídio. Seria igualmente importante que as ordens profissionais promovessem um debate sobre a participação dos profissionais de saúde no comentário a casos concretos, não se inibindo das suas funções de regulação da prática.

Por fim, a violência. Entre os vários fatores que comprovadamente a determinam estão a pobreza, a desigualdade e a discriminação. Quem verdadeiramente se preocupa com a violência terá de olhar para estes fatores e procurar formas de os combater. Os discursos discriminatórios – seja em relação às pessoas com doença mental, seja em relação a qualquer comunidade discriminada – não trazem quaisquer soluções. São a lenha de que alguns precisam para continuar a queimar a nossa coesão social.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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