O passado colonial continua a ecoar no presente do Doclisboa

Três filmes a concurso exploram as sequelas do colonialismo português: Two Refusals, As Noites ainda Cheiram a Pólvora e Resonance Spiral.

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Two Refusals (Would We Recognize Ourselves Unbroken?), de Suneil Sanzgiri, foca a presença portuguesa na Índia dr
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As Noites ainda Cheiram a Pólvora, de Inadelso Cossa dr
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Em Resonance Spiral, a portuguesa Filipa César e o guineense Marinho de Pina filmam a instalação na aldeia de Malafo da biblioteca e espaço comunitário Mediateca Onshore dr
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É inevitável que um evento como o Doclisboa, atento ao momento e ao contexto em que decorre, se debruce sobre a questão premente do colonialismo e das suas sequelas. Que tem feito correr rios de tinta e que é o tema central do Urso de Ouro de Berlim, Dahomey, de Mati Diop, que será exibido fora de concurso (Culturgest, dia 27, 19h) antecedendo a estreia nas salas portuguesas em Novembro. Onde é precisamente a questão da restituição de obras de arte do antigo reino de Daomé ao Benim por parte da potência colonial francesa que está no centro, assumindo abertamente uma função documental e introduzindo uma dimensão narrativa, ficcionada mas fiel à história.

É essa ideia das sequelas a longo prazo que alguns dos filmes mais interessantes escalados para as competições do Doclisboa exploram este ano. Sem esquecer Por Ti, Portugal, Eu Juro!, de Sofia da Palma Rodrigues e Diogo Cardoso, sobre os comandos africanos na guerra colonial (Culturgest, domingo 19, 15h30, filme sobre o qual o PÚBLICO falará quando chegar às salas no início de Novembro), as presenças portuguesas em Moçambique, Guiné-Bissau e Goa são abordadas, mais ou menos directamente, em três entradas competitivas.

Na competição internacional, a extraordinária média-metragem do indiano-americano Suneil Sanzgiri, Two Refusals (Would We Recognize Ourselves Unbroken?), foca a presença portuguesa na Índia, entre o registo de memória e a elaboração sobre mitologias. São apenas 38 minutos de cuidada exploração audiovisual ao redor de ideias de resistência e permanência, com o Velho Adamastor português e a ideia de uma memória instintiva, quase atávica, passada através da linha matriarcal: evoca-se Sita Valles, através da presença do seu irmão Edgar e de material de arquivo (tanto ficcional como documental), mas também se filma a resistente goesa Sharada Sawaikar.

Two Refusals foi concebido como parte de uma exposição no Brooklyn Museum de Nova Iorque, e desenrola-se simultaneamente em dois ecrãs com a mesma pista sonora mas imagens diferenciadas. Só que a sua pura energia sensorial que seduz e envolve o espectador passa na íntegra para o grande ecrã. Na densidade com que explora as ligações entre vivências e memórias, Two Refusals fez-nos pensar no maravilhoso Noite Incerta, de Payal Kapadia. Pena que seja exibido em sessão dupla (Culturgest, dias 22, 21h45, e 25, 14h) com outra (muito inferior) média a concurso, Tales from the Source, opaco exercício audiovisual do congolês Léonard Pongo.

Se Suneil Sanzgiri nos fez pensar em Payal Kapadia, então não conseguimos esquecer Pedro Costa ao ver As Noites ainda Cheiram a Pólvora, de Inadelso Cossa (Competição Portuguesa, cinema Ideal, dia 19, 21h45). Este regresso do cineasta moçambicano à aldeia onde cresceu com os avós em plena guerra civil no seu país, percorrido pelos fantasmas do que se viveu e não se quer (ou não se pode) dizer, invoca em permanência os chiaroscuros texturados, quase picturais, das imagens de Vitalina Varela ou Cavalo Dinheiro.

Uma filiação que faz sentido invocar, para o que é, no fundo, uma história familiar dobrada de registo histórico do passado moçambicano, filme de ruínas e fantasmas visto simultaneamente “de fora” e “por dentro”. Cossa não consegue calibrar eficazmente, contudo, as percentagens de inspiração e personalidade, resultando num filme de evidente inteligência criativa e pontuais rasgos tolhido por um estilo alheio: onde os silêncios de Costa são de límpida evidência, os de Cossa oscilam entre o afecto e a afectação.

De Moçambique passamos para a Guiné e para Resonance Spiral, onde a portuguesa Filipa César e o guineense Marinho de Pina filmam a instalação na aldeia de Malafo da biblioteca e espaço comunitário Mediateca Onshore (Competição Portuguesa, Culturgest, dia 20, 19h, e Ideal, dia 22, 21h45). Resonance Spiral faz ligação directa com Dahomey porque também aqui se fala de restituição — no caso, da restituição à Guiné-Bissau dos arquivos de cinema filmados “a mando” de Amílcar Cabral, e posteriormente restaurados. E não é preciso conhecer Spell Reel, a longa-metragem que Filipa César rodou à volta da descoberta, restauro e projecção das imagens guineenses, para apreciar este registo do modo como a modernidade da Mediateca e o quotidiano tradicional acabam por se fundir numa ideia mais lata de comunidade.

Se Mati Diop explora a restituição como ponto de partida, César e Pina apresentam-no como um ponto de chegada; demonstram a sua possibilidade em termos práticos, sem por isso deixarem de reflectir sobre questões “lamacentas” de privilégio, identidade e civilização. Como quem diz que, afinal, um outro mundo é possível.

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