“Sem biodiversidade não existe negócio, não existe PIB, não existe alimentação nem saúde”

A poucos dias do início da COP16, dedicada à biodiversidade, a bióloga Maria Amélia Martins-Loução reflecte sobre a ausência de políticas públicas de conservação da natureza.

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A bióloga Maria Amélia Martins-Loução Vera Moutinho
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Em vésperas da 16.ª Conferência das Nações Unidas sobre Biodiversidade (COP16), que tem início na segunda-feira em Cali, na Colômbia, as questões da natureza não poderiam estar mais ausentes do debate público. “Do ponto de vista político, não se vê a atenção, o cuidado e a importância da biodiversidade como se vê com o clima”, resume a bióloga Maria Amélia Martins-Loução, presidente da Sociedade Portuguesa de Ecologia (SPECO).

A professora catedrática de ciências da Universidade de Lisboa fala ao PÚBLICO sobre a ausência de políticas públicas robustas de conservação da natureza, a falta de articulação das entidades oficiais com os cientistas e a influência do lobby do agronegócio nas questões da biodiversidade.

Estamos a debater um Orçamento do Estado, temos problemas em áreas como a saúde, educação, pobreza. Porque é importante olhar para uma conferência como esta COP da biodiversidade?
É uma questão que coloco há muitos anos e sinto-me frustrada porque ainda não passei essa mensagem. As pessoas ainda não compreendem que sem biodiversidade, sem natureza, não existe negócio, não existe PIB, não existe valor acrescentado e, especialmente, não existe alimentação nem saúde. As pessoas ainda não compreenderam bem as implicações que a presença da biodiversidade assegura, o tipo de serviços fundamentais como a segurança alimentar, como a qualidade da água, a qualidade do ar que nós respiramos. Tudo isso é assegurado completamente pela biodiversidade que nos rodeia. Sentimos isso perfeitamente numa cidade em que há só casas, com muito movimento, em que nos sentimos quase afogadas, sem respirar como deve ser. Quando chegamos a um parque ou a uma zona mais aberta, mais desanuviada, temos uma outra sensação.

Quem é que deveria dar atenção a este tipo de conferências?
Além dos cientistas, os media têm um papel extremamente importante em minar este tipo de informações, colocar no léxico comum estas preocupações. Aliás, foi assim que começou a haver uma maior sensibilidade relativamente às alterações climáticas. Há mais de 50 anos que dizemos que vão existir alterações climáticas e as pessoas não ligavam. Infelizmente, as pessoas só notam esse tipo de influências quando lhes toca na pele. É necessário olhar para isto, porque sem a natureza não temos negócio, não temos recursos, não temos vida, não temos capacidade para fazer nada. Nem sequer pão para a mesa.

Pois, a biodiversidade significa também comida no prato...
É exactamente isso. Além disso, do ponto de vista político, as COP são reuniões meramente políticas. Basta pensar na alegria que todos tivemos com o Acordo de Paris, que tem sido um flop. Daqui a pouco faz dez anos e o que é que foi feito?

Este Quadro Global de Biodiversidade de Kunming-Montreal [GBF] também foi uma espécie de Acordo de Paris, à dimensão da biodiversidade.
Exactamente, foi extremamente positivo termos metas estabelecidas. Na altura, até se adiantou muito mais nessa COP15 da biodiversidade do que tinha acontecido na COP27 do clima. Tão importante que foi o acordo de Kunming-Montreal e no fim de contas esteve lá só o secretário de Estado e o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), [comparando com] o peso governamental na COP do clima. Isto demonstra perfeitamente que, do ponto de vista político, não se vê a atenção, o cuidado e a importância da biodiversidade como se vê com o clima. Hoje é bonito falar-se na questão do clima, mas a biodiversidade também está lá sempre.

Portugal não tem um plano nacional para a biodiversidade e também não actualizou a estratégia nacional. A União Europeia acabou por submeter há poucas semanas a Estratégia Europeia da Biodiversidade, aprovada em 2020, sem nenhuma actualização. Essa estratégia está em conformidade com o GBF?
A nossa presidente da Comissão [Ursula von der Leyen] tem dado uma no cravo e outra na ferradura. Ela que tanto defendeu o Pacto Ecológico está agora a tentar chamar a atenção de todos os críticos que não querem saber absolutamente nada disso. No fundo, há um refrear dessas medidas. As pessoas esquecem-se de que, no meio disto tudo, há um grande lobby. Alguns países têm receio de que, com estas medidas, haja problemas para os lobbies agrícolas. Sinto que o lobby agrícola ainda é pior que o dos combustíveis fósseis, é uma coisa impressionante. E o problema é que não se vê.

Na comunicação social também é um sector com pouca visibilidade; sem conhecimento é mais difícil destrinçar os interesses.
É verdade, mas é preciso ser escrutinado. Em Portugal há sempre a defesa de que grande parte da área é privada e o Estado não pode fazer nada, o que é uma inverdade, como agora se diz, que tem que ver com os limites com que são estabelecidas as coisas. Infelizmente, essa é a realidade política. Até o Fórum Económico Mundial, em Davos, todos os anos diz que as empresas têm de olhar para a biodiversidade, que deve haver medidas diferentes do ponto de vista económico para estar em linha com a conservação da biodiversidade. É bonito dizer-se isso, mas na prática pouco se faz.

E que avanços houve em Portugal desde a COP15 da biodiversidade?
Na reunião nacional de ecólogos que a SPECO organizou no ano passado, tivemos uma mesa redonda sobre as metas de conservação de Kunming-Montreal [de ter 30% de áreas protegidas até 2030]. O que é que significava essa medida 30x30 para Portugal? Aliás, o ICNF até acrescentou que era 30x10x30, porque 10% do território terá de estar sob protecção estrita. O ICNF, a nível internacional, continua a ser a voz da biodiversidade.

É quem nos vai representar também nesta COP16, na ausência da ministra.
Mesmo que, no fim de contas, o panorama do ICNF seja só terrestre, não há marinho. Mas fez-se uma discussão muito interessante, em que explicaram o que é que pretendiam fazer. No entanto, continua a haver um desconhecimento de quais são os mecanismos de colaboração entre o ICNF e a Direcção-Geral dos Recursos Marinhos (DGRM), e também de articulação com os cientistas e as ONG. Não existe nada disso, nunca houve partilhas.

Em que é que houve avanços, então?
Uma das coisas que acho positiva é que as ONG foram chamadas ao Ministério do Ambiente para discutir sobre a gestão dos recursos hídricos. Foi a primeira vez em não sei quantos anos que fomos chamados para algo assim, é uma abertura. Mas o que é que isto significa? Quais vão ser as consequências? Estou em crer que poderá haver um maior número de reuniões, mais encontros, maior troca de informações, o que é extremamente útil.

Em declarações ao Azul, o Governo assumiu a renaturalização dos rios como um dos principais objectivos na área da biodiversidade.
Também nos disseram isso. Aliás, uma das medidas que propus foi retirar as barragens que estão obsoletas. Estão ali para quê? Dêem vida ao rio! Isso foi uma das coisas que aparentemente fez eco e que poderá vir a ser uma oportunidade para a acção. Porque os nossos rios estão uma desgraça e precisam de ser recuperados. E acho muito bem que o façam.

Pelo menos neste objectivo há sinais de que alguma coisa está a avançar.
Alguma coisa poderá andar. Agora, quando olhamos para o mar... É um desconhecimento total. Não existem planos de gestão para as áreas marinhas classificadas. Como é que vão ser designadas essas áreas de conservação no mar? Como é que se faz uma monitorização como deve ser das áreas de conservação marinha? Tudo isto são problemas para os quais, nós, cientistas, temos dificuldade em perceber como podem ser resolvidos. Isto é extremamente importante ser discutido e ver como é que se pode conseguir pouco, mas bom. Com qualidade, porque isso é que era importante. Dizem que vão considerar para as metas de 2030 as redes de Reserva da Biosfera e Geoparques, que inclui zonas urbanas. Então, as zonas urbanas também entram para as metas de conservação? É grave. Há muitas lacunas, porque querem apanhar tudo e acabam por tentar mandar areia para os olhos. Era bom que se fizesse pouco, mas bom.