Asas

Somos massa em permanente reacção ao passado que persiste presente, na forma de dívidas e espectros. E os meios digitais têm sido esplêndidos agregadores dessa massa subjetiva.

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Marion em As Asas do Desejo (1987), de Wim Wenders Wim Wenders Stiftung
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Abundam os usos da imagem de pêndulos sociais, morais, históricos. Causas e agendas ora ganham apoio, ora deixam de o ter, tendências de gosto e de valores mudam de sinal, poderes políticos alternam, a economia segue os seus ciclos, talvez não saibamos pensar nem estar sem polarizar, movidos por uma espécie de física mental das certezas, individuais ou colectivas.

Só que a física do pêndulo é a do determinismo. Faz do que virá sobretudo efeito do que foi, equação de peso e tracção, oscilação sem pausa, com precisão de relógio. Por exemplo, os fenómenos de backlash em que grupos sociais reagem ao que entendem ser excessos do passado recente, quase sempre visando lutas por direitos de minorias. Mas também o condicionamento de lutas pela igualdade e dignidade hoje pela compensação da injustiça no passado.

Numa era de tempo sem fissuras, o pêndulo é a imagem desta entorse que constrange o presente. Somos massa em permanente reacção ao passado que persiste presente, na forma de dívidas e espectros. E os meios digitais têm sido esplêndidos agregadores dessa massa subjetiva, milhares, milhões, inapelavelmente movidos por forças do passado.

No pêndulo, é-se levado, como se não sobrasse atrito. E sem atrito, o presente não chega a libertar-se e o futuro não tem voz própria. Precisamos de outra metáfora. Em vez da aceleração da queda do pêndulo na vertigem da gravidade, pelo contrário contrariar a lei da queda, no esforço do batimento de asas que vencem a sua própria massa e a do corpo de que fazem parte. “É preciso ser leve como um pássaro e não como uma pena”, dizia Paul Valéry. Um bater de asas sustém a fragilidade diante da gravidade em vez de se libertar dela. Num magnífico ensaio (O ar e os sonhos), Gaston Bachelard apontava esta atracção gravítica – “Muitas vezes, o sonho de bater asas não é mais do que um sonho de queda” e no voo onírico as asas estão nos tornozelos, como “as asas de Mercúrio, o viajante nocturno”.

Talvez não nos seja possível viver fora do ciclo do pêndulo, mas pode-se resistir-lhe com o ciclo do voo das asas. Como a trapezista Marion de As Asas do Desejo (o filme a que Wim Wenders chamou, em tradução literal, O Céu sobre Berlim), ela balançando-se numa corda, com asas nas suas costas, asas que poderiam ser pulmões fora, pulmões que poderiam ser asas dentro. Pois, no abismo entre duas batidas, as asas dão respiração ao presente, e os pulmões trazem dentro o batimento de um voo afectuoso pela vida. Imaginemo-nos trapezistas alados como quem imagina um tempo nosso além do que o passado dita.

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