Como opera uma rede internacional que difunde a “ciência racial”

A noção de que há diferenças genéticas entre raças distintas, e que umas são superiores intelectualmente ou moralmente, é uma ideia desacreditada pela ciência.

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Manifestação da AFD na Turíngia em Agosto: um dos ideólogos da rede foi conselheiro do partido alemão de direita radical REUTERS/Karina Hessland
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Uma rede internacional que tem como objectivo propagar ideias racistas sob a aparência de discussão científica foi descoberta numa investigação do jornal britânico Guardian. Entre os seus principais ideólogos está um antigo conselheiro do partido alemão de direita radical Alternativa para a Alemanha (AfD).

A organização conhecida como Human Diversity Foundation (HDF) foi fundada há dois anos por activistas de extrema-direita de vários países europeus, com o objectivo de difundir, através de podcasts, vídeos, revistas e alegados trabalhos científicos, ideias ligadas à “ciência racial” – uma ideologia que se serve de conceitos científicos para promover a superioridade de certas raças em relação a outras.

Os partidários da ciência racial defendem que há diferenças biológicas entre raças que determinam, por exemplo, o nível de inteligência ou a propensão para cometer crimes. Estas teses estiveram em voga no século XIX e no início do século XX e serviram como justificações de base científica para defender o colonialismo e a segregação racial.

“O racismo científico tem sido usado para defender a oposição a quaisquer políticas que tentam reduzir as desigualdades entre grupos raciais”, disse ao Guardian a directora do Centro para a Cultura e Evolução da Universidade Brunel de Londres, Rebecca Sear, que a considera uma “ideologia perigosa”.

Reuniões da HDF foram gravadas por membros do grupo anti-racista Hope Not Hate e enviadas ao diário britânico que, em parceria com publicações alemãs, expandiu a investigação. Nesses encontros, discutiram-se temas como a “remigração” – um conceito que se traduz na expulsão em massa de migrantes ou cidadãos com ascendência estrangeira –, os efeitos das aplicações de encontros para a variabilidade genética ou a ausência de “brancos” entre as elites universitárias ocidentais.

A investigação jornalística também descobriu que um dos maiores financiadores da HDF é o empresário norte-americano do sector tecnológico Andrew Conru, que investiu mais de um milhão de dólares no grupo. Depois de ter sido contactado pelo Guardian para comentar as posições ideológicas dos membros da organização, Conru cortou as relações com a HDF dizendo não ter tido conhecimento das ideias racistas e discriminatórias que foram propagadas.

SS como modelo

Uma das reuniões gravadas por um membro do Hope Not Hate que passou vários meses infiltrado no grupo contou com a participação de Erik Ahrens, que se apresentou como “consultor” da AfD. Ahrens é creditado como o grande mentor da estratégia digital do partido que tem conseguido ser bastante bem-sucedido junto do eleitorado mais jovem, sobretudo através das redes sociais.

É também considerado um “extremista de direita” muito perigoso por causa da facilidade com que difunde as suas ideias radicais, de acordo com as autoridades alemãs. Após a campanha para as eleições europeias, o partido distanciou-se de Ahrens.

No encontro que teve com membros da HDF, descrito pelo Guardian, Ahrens afirmou que “as universidades eram os locais em que a sociedade – a sociedade ocidental europeia, a sociedade branca – costumava produzir as elites capazes de exercer o poder” e lamentou já não ser este hoje o caso.

“A minha visão é verdadeiramente um dia governar a Alemanha à maneira de Trump. É algo que não é feito há cem anos: liderar um movimento populista centrado em torno de uma pessoa”, declarou num dos encontros da HDF.

Noutras reuniões, Ahrens chegou a sugerir a criação de um “clube de cavalheiros” em que os membros receberiam formação e oportunidades de criarem redes de contacto, sugerindo que o modelo de recrutamento e organização poderia ser idêntico ao das SS, as forças paramilitares ao serviço do partido nazi.

“Conhecem a história das SS? Eles não tinham testes de QI e coisas dessas, eles tinham certas características externas. Mas o princípio é o mesmo”, afirmou Ahrens durante um dos encontros, depois de mostrar um vídeo em que se viam homens a combater enquanto um supervisor dava ordens.

Confrontado pelo Guardian com a referência feita ao braço armado do partido nazi, Ahrens disse tratar-se apenas de um exemplo e que poderia ter referido “qualquer outro ‘círculo interno selecto’ com elevados padrões de ingresso como exemplo histórico”.

Um dos braços mais importantes da HDF é a publicação de artigos alegadamente científicos para difundir as suas ideias. O veículo principal é o Aporia, um canal no Substack criado em 2022 por Matthew Frost, um ex-professor de um colégio privado britânico, em que são publicados textos como o de um estudo ao QI dos dirigentes nazis julgados pelos Tribunais de Nuremberga.

O canal e a sua newsletter foram entregues à HDF para poder difundir estas ideias de forma mais ampla. Frost chegou a dizer que o seu objectivo com o Aporia é “torná-lo algo maior, fazer políticas” e “permear as instituições tradicionais”. Ao Guardian, Frost disse não apoiar a extrema-direita e revelou ter deixado o Aporia em Agosto.

A HDF também diz apoiar o canal de YouTube do britânico Edward Dutton, conhecido por fazer vídeos de cariz racista, nos quais são comuns os lamentos pela alegada deterioração genética no Reino Unido. Dutton disse ao Guardian que nunca assinou qualquer contrato com a HDF e que a organização apenas usa o nome do seu canal para se promover.

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