A luta dos apátridas nos tribunais para se tornarem cidadãos portugueses

Somente a advogada Catarina Zuccaro tem 30 casos de apátridas à espera de decisão do Supremo Tribunal Administrativo. Ela diz que pode recorrer ao Tribunal Europeu por desrespeito a direitos humanos.

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Supremo Tribunal Administrativo deve decidir, dentro de um mês, casos envolvendo ao menos 30 apátridas Míriam Lago
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Há 20 anos vivendo em Portugal sem qualquer documento, J., que chegou ao país aos 14, cumpre rigorosamente a jornada de trabalho em um lava-jato. O comprometimento do rapaz com o serviço é reconhecido pelo dono do empreendimento, que se diz disposto a depor em favor do empregado em qualquer tribunal.

J. é um apátrida — indivíduo que não é titular de qualquer nacionalidade, ou seja, uma pessoa que não é considerada nacional por qualquer Estado — e está à espera de seu reconhecimento em Portugal.

Comovida com o caso dele, a advogada brasileira Catarina Zuccaro decidiu assumir a defesa do rapaz perante a Justiça. Ela está à frente de 30 casos como os de J., que esperam por julgamento no Supremo Tribunal Administrativo (STA), o que deve ocorrer dentro de um mês. Caso a legalização de seus clientes não seja aprovada, ela avisa que recorrerá ao Tribunal Europeu, com sede em Luxemburgo.

Os indocumentados defendidos por Catarina são, principalmente, de países do Norte da África, como Argélia, Tunísia e Marrocos. "Esperamos sentenças favoráveis", afirma ela. "Mas, em caso de negativa, vamos ao Tribunal Europeu, pois é questão de direitos humanos”, assinala. Os apátridas não têm direito a registro no Sistema Nacional de Saúde (SNS), a cartão de identificação, a inscrição na Segurança Social e na Autoridade Tributária e a carta de condução.

Muito dessa situação degradante, acrescenta a também advogada Tatiana Kazan, decorre da falta de ação por parte da Agência para Integração, Migrações e Asilo (AIMA). “A agência, infelizmente, não cumpre o papel previsto nas normas europeias. Isso quer dizer que Portugal descumpre a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, da qual o país é signatário", afirma.

O texto da Carta, segundo Tatiana, ressalta, no Artigo 42, a previsão de que imigrantes “possuem o direito de acesso aos documentos necessários para legalizar a situação", como "qualquer cidadão da União”. Esse é o caminho para se chegar ao Tribunal Europeu.

Para Catarina, a AIMA não cumpre a Carta de Direitos Fundamentais ao impedir que os imigrantes, apátridas ou não, façam um simples agendamento para marcação de entrevistas. “A espera por um atendimento passa de um ano e, muitas vezes, a concessão de documentos é negada", frisa. Nesse contexto, a advogada espera que a Assembleia da República avance com o Estatuto do Apátrida, em discussão interna, ainda sem data para aprovação.

Residência permanente

Tatiana ressalta que o sistema de imigração de Portugal precisa melhorar muito, sobretudo pelo peso econômico que os estrangeiros têm tido no país. Basta, para isso, ver o quanto eles estão contribuindo para a Segurança Social. Apenas os brasileiros recolheram, em 2023, mais de 1 bilhão de euros (R$ 6 bilhões) aos cofres públicos.

"Veja, por exemplo, o caso dos cidadãos que estão à espera das autorizações de residência permanente em Portugal. Essas pessoas não conseguem atendimento, e o único recurso tem sido a Justiça. Lembrando que estamos falando de imigrantes que passaram por todo processo de regularização", enfatiza.

Ela reconhece alguns avanços recentes por parte do Parlamento português, que, na última sexta-feira (11/10), aprovou, em primeira votação, proposta de lei para que sejam concedidos títulos de residência para imigrantes que contribuem, há pelo menos 12 meses, para a Segurança Social.

Essa medida, se levada adiante, beneficiará os estrangeiros que não conseguiram recorrer à Manifestação de Interesse, extinto pelo governo, sem um período de transição, em junho passado. "É preciso preservar o direito dos imigrantes", afirma Tatiana. "Não se pode deixar as pessoas que escolheram Portugal para viver no limbo e estão dando sua contribuição ao país", acrescenta

Ela reconhece, porém, que a Manifestação de Interesse “não era a melhor solução para os imigrantes". O correto, no entender dela, é emigrar com um visto, seja para procura de trabalho, seja de estudante ou de aposentado. Esse é o caminho mais seguro para quer mudar de país, e não entrar como turista e ir ficando. "Agora, aqueles que já entraram em território português e estão produzindo devem ter um tratamento digno", destaca.

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