Acerca do concurso para a direção artística do Teatro Nacional São João

No interesse do serviço público da cultura e da missão do teatro nacional, quem quisesse assumir a direção artística deveria assumir funções a tempo (mesmo) inteiro.

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O Teatro Nacional São João (TNSJ) acaba de anunciar um concurso internacional para seleção da sua direção artística. O procedimento já se adivinhava desde o ano passado, na sequência da divulgação das respetivas reuniões preparatórias, mas só agora se conhecem os termos regulamentares em que o mesmo se vai desenvolver.

E vale a pena, digo eu, lançar um olhar sobre modo como o TNSJ reflete, nos diplomas que o têm regulado, a sociedade e o espetáculo, entre os séculos XX e XXI, bem como a sua missão e, em particular, os perfis e conteúdos funcionais associados à direção artística.

Tudo começou em 1997, com a lei orgânica do decreto-lei 242/97, que reservava o cargo exclusivamente para encenadores. A opção era consequência natural da massa crítica de que ainda gozava uma particular relação entre literatura e espetáculo, assegurada, no topo da pirâmide profissional, pela figura do encenador. Quanto à utilização do género masculino, apesar de corresponder a um padrão de escrita, também não deixava de encerrar uma verdade de final de século: em Portugal, a encenação era coisa sobretudo reservada a homens, em particular de meia-idade. E, assim, o encenador convidado a assumir o cargo, pelo Ministério da Cultura, tinha o direito de inscrever na programação anual do TNSJ três encenações suas.

Dez anos depois, e com a passagem do TNSJ a Entidade Pública Empresarial, o decreto-lei 159/2007 deixa de usar o termo “encenador” e limita a duas as criações que o diretor artístico (ainda no masculino e ainda por convite) pode anualmente inscrever na programação do teatro nacional.

Finalmente, no ano passado, com as alterações introduzidas pelo decreto-lei 95/23, abre-se a porta para uma nomeação por concurso público internacional, que só deveremos saudar. E porque estamos já bem avançados no século XXI, o que agora se procura – de acordo com o regulamento do concurso em apreço são artistas, fazedores e fazedoras de teatro, autores e autoras de espetáculos; mais inclusivo não podia ser. Mas continua a salvaguardar-se o direito de o/a candidato/a vencedor/a programar duas criações próprias por ano.

Era aqui que eu queria chegar, a este legado do século XX que permanece agarrado à gestão da coisa pública quando já tanto vai de século XXI. Refiro-me aos critérios para um cargo com conteúdos funcionais associados à direção artística, a tempo inteiro e em exclusividade, de uma organização com a escala e a importância do TNSJ, insistirem, na prática, em projetar uma atividade tão importante, para um exercício (como que) em part-time, em que, a cada semestre, o/a candidato/a vencedor/a terá de desdobrar-se em autor/a principal de uma grande produção da casa, deixando de ter a disponibilidade a tempo inteiro que a missão de serviço público supostamente exige.

Ou seja, apesar das mudanças de artigos e nomenclatura, a essência da lei orgânica de 1997, no que diz respeito à direção artística, permanece intocada e, aparentemente, mais focada no prémio pela carreira e pelos méritos artísticos do que na missão da instituição; mais focada na pessoa contratada do que nos utentes do serviço público de cultura.

Pergunto: é de particular interesse para os/as utentes do TNSJ, a acumulação de criações de uma única pessoa (oito em quatro anos)? Não seria mais interessante – e isto é só uma entre várias outras possibilidades – optar por candidaturas que não se focassem na personalidade de quem assume a direção artística, valorizando mais a disponibilidade para pensar/dialogar o programa e, simultaneamente, trazer uma maior diversidade de vozes para a programação? Penso, por exemplo, em um/a fazedor/a residente por ano; sendo que no primeiro ano de mandato, aí sim, o/a candidato/a selecionado/a poderia assumir também esse papel, em jeito de apresentação.

O que não consigo perceber, enquanto utente do serviço, é a manutenção de um paradigma que me parece confundir o reconhecimento de mais-valias artísticas com a adequação e disponibilidade para o exercício de um cargo. Em suma, no interesse do serviço público da cultura e da missão do TNSJ, quem quisesse assumir a direção artística deveria, na minha opinião, assumir funções a tempo (mesmo) inteiro e com limites (mesmo) muito mais apertados para a inscrição na programação de produções pelas quais lhe sejam devidos direitos de autor.

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