Livre propõe regulamentar estatuto do apátrida para resolver vidas que “estão no limbo”
ACNUR lança esta segunda em Bruxelas a Aliança Global para o Fim da Apatridia. Em Portugal, os censos de 2021 identificaram 149 apátridas. Criou-se o estatuto, faltam as regras para terem cidadania.
A primeira vitória já leva quase ano e meio, quando a Assembleia da República (AR) aprovou a criação do estatuto, mas o processo para que a centena e meia de residentes em Portugal que nos censos de 2021 se declararam apátridas possam finalmente ter direitos e deveres reconhecidos não mais andou. Um apátrida é “toda a pessoa que não seja considerada por qualquer Estado, segundo a sua legislação ou por efeito de aplicação da lei, como seu nacional”.
A regulamentação da lei devia ser feita pelo Parlamento no prazo de três meses, mas a dissolução e novas legislativas foram atrasando o assunto. O Livre, de quem já tinha sido a iniciativa para o estatuto - aprovado como voto a favor de todos os partidos e apenas a abstenção do Chega -, entrega nesta segunda-feira na AR um projecto de lei para regulamentar a lei e definir os mecanismos para que possa ser concedida a nacionalidade portuguesa aos apátridas que residem no país há pelo menos três anos, descreveu ao PÚBLICO o deputado Paulo Muacho.
A regra do prazo de residência é mais permissiva que os cinco anos para a concessão de nacionalidade por naturalização a outros estrangeiros que habitem no país, mas igual ao regime especial criado no ano passado para os descendentes de judeus sefarditas. Além disso, a pessoa titular do estatuto de apátrida terá que conhecer "suficientemente a língua portuguesa" e não poderá "constituir perigo ou ameaça para a segurança ou defesa nacional, pelo seu envolvimento em actividades relacionadas com a prática de terrorismo, criminalidade violenta, especialmente violenta ou altamente organizada", especifica o projecto de lei.
Paulo Muacho conta que a data foi escolhida para coincidir com a reunião do ACNUR em Genebra, onde será a Aliança Global para o Fim da Apatridia precisamente dez anos depois de a agência, então sob a liderança de António Guterres, ter lançado a campanha #IBelong com o objectivo de acabar, numa década, com os 10 milhões de apátridas que existiriam, então, em todo o mundo. A apatridia diminuiu, mas longe da meta estabelecida: no final de 2023, o ACNUR estimava que seriam ainda 4,4 milhões de pessoas nessas condições, fora os muitos que escapam às estatísticas dos radares oficiais, sobretudo devido às migrações decorrentes de conflitos.
Um apátrida não tem documentação básica como um cartão de cidadão, o que também não lhe permite qualquer outra documentação e isso significa não ter acesso a direitos básicos como inscrever-se no SNS, na Segurança Social, nas Finanças ou na escola, abrir uma conta bancária nem tirar a carta de condução ou o passe de transporte público, ter um contrato de trabalho ou de arrendamento oficiais, casar e dar nome aos filhos, comprar um carro ou uma casa. Na prática, é como se essa pessoa não existisse.
Como se prova, então, que alguém não tem outra nacionalidade? É aqui que entrará a AIMA - Agência para a Integração, Migrações e Asilo, a quem compete reconhecer o estatuto de apátrida, fazendo uma investigação aos antecedentes dessa pessoa - restante família, conexões noutros países, pedidos anteriores de reconhecimento do estatuto - e recolhendo testemunhos e informações junto de outras entidades, nomeadamente o ACNUR no caso de nascidos no estrangeiro (a larga maioria).
Caso essas entidades estrangeiras não respondam no prazo de três meses, presume-se que não é considerado por esses países como seu nacional. Ao pedir o estatuto de apátrida, a pessoa recebe uma autorização de residência provisória por seis meses, que será renovada até haver decisão final para o processo de naturalização. Caberá também à AIMA atestar depois, junto do Ministério da Justiça, as condições formais para a obtenção da cidadania portuguesa.
"Não temos ideia de quantas pessoas apátridas existam em Portugal", admite Paulo Muacho, ainda que se vão conhecendo alguns casos de pessoas vindas de África que nunca conseguiram resolver a sua situação. Nos censos de 2021, houve 149 pessoas que se identificaram com essa designação, um dos valores mais baixos de sempre: tinham sido 553 em 2011, 1075 em 2001. A lei da nacionalidade de 1981, muito restritiva na sua atribuição e que não permitia aos filhos de estrangeiros residentes há menos de seis anos terem acesso à nacionalidade portuguesa (numa altura da onde de imigração do Leste) levou a que nos censos de 1991 esse número fosse especialmente elevado, de 19.698 pessoas.