A portuguesa que ousou abrir uma casa de samba no reduto do fado

Ana Garcia fundou há quatro anos o Sambalfama bem no coração de Lisboa, onde o ritmo português se mantém firme. Houve um embate com os comerciantes da região, mas a paz prevaleceu entre os estilos.

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Ana Garcia diz que sempre sonhou em ter a própria casa de samba. E conseguiu. O Sambalfama está no coração do fado Vicente Nunes
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A portuguesa Ana Garcia, 44 anos, sempre dizia para as amigas mais próximas que um dia teria um espaço para abrigar uma roda de samba. Cada vez que ela tocava no assunto, as ouvintes davam um grande desconto. Afinal, o que uma lusitana raiz, educadora infantil, que nunca havia pisado no Brasil, faria à frente de um local onde a batucada fosse a grande estrela. Ana sabia que, muitas vezes, falava aos ventos. Mas a ideia estava incrustada na mente dela.

Enquanto aquele sonho era alimentado, todas as quintas-feiras, Ana tinha uma parada obrigatória no Cais do Sodré, logo após deixar o trabalho. “Esse local nem existe mais, mas batia ponto lá todas as quintas. Tudo para ouvir samba, provar comida brasileira, me alimentar da alegria daquele ambiente”, lembra. Foram anos e anos na mesma rotina. “Não me cansava. Na verdade, aquele samba, as pessoas que ali frequentavam só me faziam bem”, acrescenta.

Há quatro anos, passando em frente a um clube pouco utilizado em Alfama, Ana pensou: “Quem sabe tenha chegado a hora de ter a minha casa de samba”. Foram dias e dias matutando aquela ideia, até que tomou coragem, foi à administração do local e propôs o negócio: ocuparia o salão de cima do prédio, que estava vazio havia tempos. Para surpresa dela, a resposta foi positiva. Ana estava prestes a inaugurar o Sambalfama, no reduto do fado português.

A primeira sexta-feira de batucada foi um sucesso. Na semana seguinte, mais pessoas compareceram. E, assim, o Sambalfama foi criando nome. “Mas veio a reação”, ressalta Ana. “Comerciantes da região, representantes de algumas casas de fado, começaram a reclamar do movimento, do barulho, daquela música que provocava alegria em excesso. Foram muitos os ataques. No início, rebatia a todos, e isso só provocava mais ataques. Um dia, resolvi não responder mais a nenhuma provocação. Tudo se acalmou e a convivência se pacificou”, relata.

Caminho penoso

Quando olha para trás, para todo o percurso percorrido, a portuguesa miúda, mas de fala firme, diz, enfática: “Valeu muito a pena ter insistido no meu sonho, mesmo que muitos não tenham acreditado ser possível concretizá-lo”. Ela complementa: “Às vezes, tem sido um caminho penoso, mas, na maior parte do tempo, muito bom. Quando temos uma ideia de crescimento, muitos obstáculos vão aparecer. É da vida”.

Ana faz questão de deixar claro que não quer levar o rótulo de empresária da noite do samba. “Não quero ser essa pessoa. Quero apenas ter um espaço em que as pessoas se sintam em casa. E isso é o que efetivamente ocorre no Sambalfama”, assinala. “Combinamos samba com feijoada dois sábados por mês. E, todas as sextas-feiras, temos a nossa roda de samba”, emenda.

O desejo de manter o ambiente bem familiar, como se fosse uma extensão da casa dos frequentadores, faz com que Ana mantenha quase sempre a mesma formação do grupo que se apresenta no local. “É quase tudo família. Alguns sambistas são filhos da senhora que faz a feijoada. Isso torna as coisas mais fáceis. Todos chegam, sabem como montar o palco, o som, a iluminação. Sabem como gosto das coisas”, frisa.

A receita caseira tem dado certo. “Estamos de pé, firmes, sempre com a casa bem frequentada”, diz. Mas há uma preocupação adicional para que o samba não desafine: a segurança. “Nossa casa é frequentada por muitas famílias com crianças pequenas. Elas conhecem todos os cantos da casa e se sentem tranquilas, o que permite que as mães possam se divertir. É essa a diferença que quero manter. As pessoas precisam se sentir bem e seguras nos locais que escolheram para se divertir”, ressalta.

O samba cura

Pelo Sambalfama passaram vários artistas, mas uma banda, em particular, soube usar o espaço com propriedade para saltar no colo do público: o Grupo Gira, formado só por mulheres. O público que passou a acompanhá-las ficou tão grande que elas tiveram de mudar para um local maior. “São artistas muito talentosas”, destaca Ana. A casa também deu palco para Karla da Silva, uma das mais requisitadas cantoras brasileiras em Portugal. “Mas ela tem uma agenda muito cheia, com várias apresentações pela Europa. Não tinha como ficar fixa na casa”, acrescenta.

Ana gosta de lembrar o que chama de recomeço do Sambalfama. Nem bem tinha aberto a casa e veio a pandemia do novo coronavírus. Foi quase um ano com a casa fechada. Mas fevereiro de 2021 chegou e, com a situação da pandemia mais controlada, ela decidiu promover um carnaval. “Convidamos uma escola de samba de Sesimbra, a Carvalho em Pé, e foram três dias de muito samba. Saímos pelas ruas do bairro, as pessoas se juntaram a nós, pois estavam sedentas por diversão. Foi lindo”, conta.

O carnaval, por sinal, entrou para o calendário fixo do Sambalfama. “Sei muito bem o que as pessoas sentiram naquele carnaval, depois de tanto sofrimento. Sabemos que, na vida pessoal, todos têm problemas, têm dias ruins. Isso acontece comigo”, assinala. “Mas é incrível, quando chego na casa do samba, fico no meu canto, observando o ambiente e, de repente, os problemas desapareceram. A alegria me toma. Não sei explicar o que acontece, mas é uma energia indescritível. Posso dizer, com toda sinceridade, que o samba cura”, afirma.

Ana ainda sonha em conhecer o Brasil. “Essa hora vai chegar”, diz. Por enquanto, ela vai convencendo as pessoas que frequentam o Sambalfama que aquela casa, tão carregada do estilo brasileiro de ser, decorre do desejo de uma portuguesa que ousou adentrar o coração do fado e mostrar que, na música, não há barreiras, que todos os sons se complementam. “A arte deve sempre aproximar, nunca afastar as pessoas”, conclui.

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