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Para sociólogo, “se Trump vencer nos EUA, Bolsonaro será candidato forte no Brasil”
Jessé Souza teme o resultado das eleições nos Estados Unidos, pois pode tornar Bolsonaro elegível. Para ele, há uma “elite de rapina” no Brasil e o motor da miséria se dá pela apropriação cultural.
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Crítico feroz da elite brasileira, a qual ele chama de "rapina", o sociólogo Jesse Souza, 64 anos, afirma torcer pela vitória da candidata Kamala Harris, do Partido Democrata, nas próximas eleições dos Estados Unidos. Na avaliação dele, se republicano Donald Trump for o vencedor das urnas, serão elevadas as chances de o Congresso brasileiro derrubar a inelegibilidade de Jair Bolsonaro, que será um candidato forte.
Souza afirma que o grande fluxo de brasileiros migrando para Portugal é reflexo da falta de oportunidades no Brasil, onde os grupos mais ricos se apropriam que um discurso que leva os mais pobres a se posicionarem contra o que seria melhor para eles. Isso, no entender dele, se agrava porque a esquerda, sobretudo o PT, partido do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, acredita, erroneamente, que apenas a melhora da economia será capaz de trazer de volta o apoio popular a esse campo político.
Formado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), com doutorado em Sociologia na universidade alemã de Heidelberg e pós-doutorado em filosofia e psicanálise na New School for Social Research, de Nova York, Souza buscou um novo caminho para explicar a divisão da sociedade entre os que cada vez mais acumulam riquezas e a grande maioria da população que enfrenta enorme dificuldade para ter o mínimo para sua sobrevivência.
Nascido em Natal, o sociólogo é, atualmente, professor da Universidade Federal do ABC, em São Paulo. Antes, deu aulas na Universidade de Bremen, na Alemanha, na Universidade de São Paulo (USP), na Federal Fluminense e na Federal de Juiz de Fora, entre outras. Foi presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de 2015 a 2016, sendo exonerado após Michel Temer assumir o poder. Até agora, publicou 39 livros.
Souza está em Portugal, onde participou do seminário O Brasil na Nova Ordem Mundial, realizado na sede da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Além disso, lançou, em Lisboa, seu livro mais recente, O Pobre de Direita — A Vingança dos Bastardos. Veja trechos da entrevista concedida ao PÚBLICO Brasil.
O Brasil vive um fenômeno migratório como nunca ocorreu. Milhões de brasileiros têm saído do país. O que provoca esse fenômeno?
Nesse caso, é uma daquelas questões que a gente não tem dúvida: obviamente, é a falta de oportunidade devido a um mercado extremamente restritivo, neoliberal, ou seja, sem nenhuma proposta desenvolvimentista de estímulo à indústria, de estímulo à pequena empresa. As pessoas não têm emprego e saem em busca de uma melhor oportunidade. No segundo Governo Lula, era o contrário. Eram os portugueses que estavam indo para o Brasil, especialmente, aqueles com capacidade técnica, porque o país estava em expansão. Enfim, isso tem a ver com o tipo de dominação que a gente tem e com a elite que temos.
Acredita que isso possa ser revertido?
Acredito. Agora, estamos com as piores cartas na mão. A direita e a extrema-direita arrasaram nas mais recentes eleições para vereadores e prefeitos. Temos aí um quadro para 2026, que é muito complicado por mil razões. Primeiro, por uma articulação muito bem feita pela extrema-direita, tanto mundial quanto nacional, financiada com muito dinheiro pela mesma elite, a da Faria Lima (centro financeiro do Brasil), e o agronegócio horroroso que temos, que é assassino, queimador de terra, destrutivo ao extremo, com pessoas que não se importam com o projeto do país. E, também, uma incompetência do que a gente chama de esquerda, que sequer percebe a necessidade de se lutar pela hegemonia das ideias, que é isso que isso que define a política. A esquerda, especialmente o PT, pensa que vai mudar um pouquinho a economia e que as pessoas vão, espontaneamente, saber que isso é o melhor para elas. Isso é uma ingenuidade, marxismo vulgar.
O Brasil, hoje, está muito dividido. Como é que se consegue que as pessoas que precisam do Estado para as suas necessidades básicas se posicionem a favor da redução desse Estado e mesmo da destruição desse Estado?
Houve um golpe de Estado para, entre outras coisas, dominar o Banco Central. Você domina o Congresso, limita o Executivo, ou seja, a única instância democrática do país. Isso já está sendo montado há algum tempo. Vão sendo construídos esses nichos, e a religiosidade evangélica faz o resto, porque é neoliberal. Então, há uma hegemonia cultural. E isso imbeciliza. Toda pessoa nasce inteligente, mas você pode ser transformado em imbecil se essa é a única informação que você recebe. Então, há uma esfera pública colonizada pelo dinheiro, como diria o filósofo alemão Jurgen Habermas. E, se isso acontece, você vai ser convencido contra o seu melhor interesse.
O Brasil é um país que tem uma tradição racista muito forte, mas a própria população negra utiliza entre si termos que são considerados preconceituoso. Isso é uma banalização do racismo?
Quando é o oprimido a usar as palavras, é uma tentativa de ressignificar isso. Nos Estados Unidos, isso é muito claro quando se chama um ao outro de “nigger”, que é o pejorativo mais importante. É como se passou com os gays. Gay era uma palavra pejorativa, mas quando a pessoa se assume e se chama de gay, impõe uma outra versão.
O senhor afirma que, no Brasil, existe uma elite da rapina. Como é que se constrói essa elite?
A primeira coisa são as ideias envenenadas. A USP foi uma grande usina disso. Não que todo mundo lá seja ruim, mas foi construída para isso pela elite São Paulo. Se você tem as ideias envenenadas por pessoas geniais, que fazem de conta que estão criticando a sociedade, quando, no fundo, estão impondo os piores preconceitos da elite, como Sérgio Buarque e 90% da intelectualidade brasileira, que é influenciada por ele. Se há o domínio de toda a produção simbólica, as editoras, os jornais, a televisão, impõe-se aquela visão a todas as outras pessoas. Basicamente, é uma elite que precisa do Estado, porque é a forma como ela rouba a população. Rouba de um modo que, hoje em dia, é invisível, por meio de juros escorchantes. A imprensa venal vai dizer que juros altos são bons para o trabalhador, porque não aumenta a inflação. Como ninguém entende de economia, aceita-se a explicação, porque é a única existe. É uma transferência de recursos enorme da população como um todo para meia dúzia de canalhas que estão por trás dos bancos. Basicamente, é uma elite da rapina que rouba, porque isso é um assalto. Crime grande, quem faz, é essa elite que rouba muito e tira toda a capacidade de compra da população. E mente, desvirtua, cria uma realidade paralela e tem todos os mecanismos para assaltar todo mundo, com uma imprensa para negar isso e jogar a culpa em outras coisas.
Atualmente, ideias que seriam, há cinco anos, consideradas absurdas e ultrajantes são faladas com maior naturalidade. Porque isso?
Isso é efeito da extrema-direita americana, que é singular em relação ao fascismo europeu, embora tenham coisas semelhantes. É uma extrema-direita tecnológica, moldada pela redefinição e destruição dos acordos civilizatórios, que preveem que as mulheres têm direitos, assim como as minorias, os negros e os pobres. Além de negar isso, criminalizam. Aí, é criado um palco ideal para que possa haver uma exploração sem nenhum limite em que se põe um pobre contra o outro pobre, não contra o rico.
Estamos há dias da das eleições americanas. Como é que vê esse processo?
Eu torço pelo Partido Democrata porque, com Trump no poder, acho que Jair Bolsonaro volta a ser elegível, e ele iria ser o candidato mais forte para 2026. Não quero que isso aconteça. Agora, acho que os dois partidos, Democrata e Republicano, são a mesma coisa, porque, no fundo, é a política imperial.