“O grande desafio está na adaptação das grandes indústrias”

Em entrevista, José Melo Bandeira, CEO da Veolia Portugal, aborda impactos já sentidos, o crescimento esperado e a contribuição da empresa para os desafios climáticos e a descarbonização em Portugal.

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A Veolia Portugal, parte de uma multinacional de origem francesa na área da gestão de resíduos, água e energia, já tem em acção o novo programa estratégico para o período 2024-2027. O plano, em Portugal, visa intensificar a implementação de soluções para despoluir, descarbonizar e regenerar, com uma aposta em investimentos significativos e aquisições estratégicas. Além disso, reforça o compromisso com a inovação e novas tecnologias, defendendo a aposta em soluções energéticas de base renovável e descentralizadas, a reutilização de águas residuais e a dessalinização. Além disso, a regeneração multimaterial, para enfrentar os desafios ambientais, é também uma área de actuação, como explica José Melo Bandeira, CEO da Veolia Portugal.

O novo programa estratégico da Veolia para 2024-2027 visa acelerar a implementação de soluções para despoluir, descarbonizar e regenerar os recursos. Qual o impacto que este plano já está a ter?

No plano estratégico anterior 2019-2023, o foco foi a assunção do conceito de transformação ecológica, que significa contribuir para o progresso da humanidade, respeitando os limites do planeta. Para 2024-2027, o tema central está mais orientado para a acção, materializado na abordagem green-up, scale-up and speed-up, que reflecte uma ambição renovada e ampliada, focada em passos concretos e realidades palpáveis. Neste período, contamos, por comparação com o plano anterior, quase que duplicar o volume de actividade em Portugal, o que pressupõe um esforço grande também de investimento.

Em 2024, já estamos a concretizar investimentos significativos. Prevemos, por um lado, um crescimento orgânico, com novos clientes e o desenvolvimento progressivo das equipas, e, por outro, um crescimento por via de aquisições, identificando operações relevantes que impulsionem a nossa aceleração. Um exemplo desse crescimento externo é a aquisição da Micronipol, especializada no sector da reciclagem de plásticos, que concluímos em Julho este ano. Já estamos a operar com eles, o que nos permite expandir a oferta de soluções e cumprir o objectivo de reciclar e regenerar ao máximo os materiais com os quais lidamos nas nossas actividades industriais e urbanas.

Além disso, concluímos, neste mês de Setembro, a aquisição da Ambitrevo, uma empresa focada na valorização de resíduos orgânicos, alinhada com as áreas estratégicas do nosso desenvolvimento e crescimento. Esta área desempenha um papel estratégico para completarmos o nosso portefólio de operações e serviços. Não apenas porque envolve o reaproveitamento e valorização de resíduos, mas também porque representa um desafio significativo a nível global, europeu e em Portugal. Actualmente, este tipo de resíduos não tem sido devidamente tratado, algo que pretendemos melhorar, contribuindo activamente para essa mudança no país. O objectivo é encontrar soluções que, além da regeneração de recursos, estejam alinhadas com o processo de descarbonização. Dessa forma, conseguimos, simultaneamente, gerar compostos utilizáveis na agricultura e criar oportunidades de transformação destes materiais em energia, como é o caso do biometano

Estamos também a identificar oportunidades para desenvolver activos próprios, sempre relacionados com as nossas actividades, investindo continuamente em Portugal. Estimamos investir, ao longo destes próximos anos, em média, 50 milhões de euros por ano.

Qual é a importância de ter uma oferta integrada para a gestão da água, dos resíduos e energia? E de que forma é que esta estratégia pode afigurar-se uma contribuição relevante para o plano de descarbonização nacional?

De facto, estas actividades, para além de históricas, alicerçam todo o nosso desenvolvimento. As áreas da água, energia e resíduos possuem particularidades e tecnologias específicas. No entanto, cada vez mais vemos essas áreas interligadas em projectos integrados, onde descarbonização, despoluição e regeneração de recursos são fundamentais. A integração destas soluções leva-nos também a abordar, de uma forma agregada, um conjunto muito relevante de projectos. E cumprir, dessa forma, aquilo a que nos propomos: acelerar a descarbonização e a regeneração de recursos.

Estes sectores e objectivos cruzam-se com o Plano de Descarbonização Nacional, tanto nas nossas operações – reduzindo emissões e desperdícios – quanto ajudando os nossos clientes a avançarem nos seus próprios processos de descarbonização. Outro ponto relevante é a reutilização de águas residuais, uma solução que pode ajudar a combater a escassez de água e, ao mesmo tempo, valorizar nutrientes ou gerar energia a partir do biogás e do biometano. E, nesse sentido, globalmente, estamos a contribuir para os desígnios nacionais.

Quais os sectores industriais prioritários para a Veolia em termos de descarbonização?

As indústrias prioritárias para descarbonização são aquelas que enfrentam grandes desafios no uso de energia, reaproveitamento de água ou gestão de resíduos complexos. Sectores como agro-indústria, papeleira, cerâmicas, cimenteiras, indústria automóvel, mineração, química e farmacêutica apresentam desafios significativos, sendo o foco das nossas soluções. Essas indústrias têm potencial para gerar impactos significativos e concretos no caminho da descarbonização e a nossa contribuição passa por oferecer soluções e tecnologias inovadoras e incentivar a economia circular, promovendo tanto o reaproveitamento de materiais como a regeneração da água, e substituir combustíveis fósseis por energias de base renovável.

Neste contexto, é fundamental o upskilling e a qualificação dos nossos colaboradores para estas áreas de actividade, que são normalmente áreas de maior exigência técnica e especialização.

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As indústrias prioritárias para descarbonização são aquelas que enfrentam grandes desafios no uso de energia, reaproveitamento de água ou gestão de resíduos complexos. José Melo Bandeira, CEO da Veolia Portugal

Concretamente no que respeita à escassez da água, em Portugal, tem um especial significado, em especial no Alentejo e no Algarve. Que soluções imagina para o futuro desse sector?

O tema da escassez da água tem ganhado particular relevância. Não é por acaso. Vários estudos já indicavam que a zona do Mediterrâneo ia ser uma zona muito impactada por todo este conjunto de alterações climáticas. Uma delas, e de maior visibilidade, está relacionada com a água. E infelizmente as previsões estão a acontecer. Esta pressão coloca-se de forma sensível na zona sul de Portugal, com características vincadas por causa do turismo em Portugal e, em especial, na região do Algarve. Temos um país com uma diferença marcante entre o Norte e o Sul do que à disponibilidade da água diz respeito e temos um conjunto de infra-estruturas que, hoje, colocam grandes desafios para que seja possível ter este recurso como garantido.

Mas mais do que confirmar o diagnóstico já feito, queremos contribuir para a identificação de soluções e políticas públicas nesta matéria para Portugal. Foi com essa motivação que a Veolia, no âmbito do Pacto para a Gestão da Água e com um grupo de trabalho coordenado pela CATÓLICA-LISBON, participou do projecto liderado pelo Professor Miguel Gouveia, para estudar o valor económico da água, com conclusões muito interessantes e que podem ajudar a definir melhor políticas públicas para o país.

Pergunta-me, portanto, como podemos contribuir hoje para esta problemática? A grande aposta recai sobre aquilo que os agentes públicos e privados podem fazer, através de tecnologia e soluções que permitam melhor aproveitar, já hoje, as infra-estruturas existentes que carecem de serem renovadas e melhoradas. Estou a falar de estações de tratamento de águas residuais, quer municipais, quer industriais, que, com algum investimento, mas sobretudo tecnologia avançada, podem, de facto, ser geradoras de recursos e de serviços que hoje não estão a ser usados. Refiro-me, por exemplo, à reutilização das águas residuais e recuperação de nutrientes.

A cada dois anos, a Veolia realiza um barómetro internacional. No último estudo, que abrangeu 25 mil pessoas em 25 países, constatou-se que dois terços da população mundial está disposta a consumir água reutilizada. Este dado revela uma crescente consciência sobre a necessidade de encontrar soluções sustentáveis para a escassez de água. A reutilização e a dessalinização são, portanto, fundamentais. Por fim, é essencial compreender que não existem soluções milagrosas, será a combinação de várias abordagens que garantirá a resiliência e a segurança do abastecimento de água para a população.

Falando em números, 80% das pessoas estão também disponíveis para consumir produtos que tenham sido, de alguma maneira, produzidos ou regados com águas reutilizadas. Considera que estamos no caminho de uma mudança de mentalidades?

Eu não tenho dúvidas de que estamos a viver já uma alteração de mentalidades. Porém, diria que aquilo que vamos ter de enfrentar nem sequer vai ter isso em consideração porque não vamos ter outra alternativa que não seja recorrer a essas soluções. Em Portugal, já estamos envolvidos em projectos que pretendem demonstrar que a utilização de águas residuais não representa risco para a saúde humana. Pelo contrário, o aproveitamento e a utilização destas águas residuais podem introduzir até resultados muito positivos porque, como estão reforçadas com nutrientes, acabam por ajudar, melhorando o ciclo de produção na agricultura.

E de que forma Portugal pode ser encarado como um país de oportunidades na área da descarbonização?

Actualmente, Portugal já se posiciona como um país de oportunidades, apesar das críticas que por vezes surgem sobre o seu tamanho e limitações. A nossa responsabilidade, enquanto grupo e enquanto país, é continuar a fomentar essas oportunidades, especialmente em sectores críticos como a transição energética. Portugal tem dado exemplos notáveis nesta área, com um esforço contínuo para aumentar a produção de energia renovável e a eficiência energética.

Contudo, o grande desafio está na adaptação das grandes indústrias, que exigem infra-estruturas e fontes de energia alternativas para substituir os combustíveis fósseis. Este processo requer uma nova “revolução industrial”, aproveitando a tecnologia, a formação e a qualidade da nossa mão-de-obra.

O país tem uma oportunidade única de atrair novas indústrias, como no caso do lítio, em que podemos estabelecer uma cadeia de valor completa, desde a extracção até a fabricação de baterias e outros componentes essenciais para a mobilidade eléctrica e o armazenamento de energia, bem como a reciclagem de baterias. Além disso, a criação de infra-estruturas localizadas para a produção e utilização de gases renováveis e a adoção de tecnologias de captação de carbono em determinadas indústrias, podem, de facto, trazer uma nova dinâmica ao mercado e fortalecer as parcerias entre as entidades envolvidas, permitindo uma transição energética mais eficiente.

Por fim, a aposta nas novas tecnologias, como a inteligência artificial, é outro campo onde Portugal pode destacar-se, alavancando o seu potencial para atrair investimentos e impulsionar o desenvolvimento industrial e tecnológico.

Como é que estas novas tecnologias estão a ser importantes para o progresso do vosso negócio? E que perspectivas vê a médio e longo prazo nestas áreas?

Hoje, cerca de 50% das soluções técnicas necessárias para a transição energética já existem, mas o grande obstáculo para a sua implementação não é a tecnologia, mas sim os processos de decisão. Estudos mostram que, se as empresas adoptassem as tecnologias já disponíveis, poderíamos reduzir as emissões em pelo menos 30%. O investimento é acessível, os benefícios económicos e ambientais estão comprovados, mas muitas vezes falta a decisão de avançar. Quanto aos outros 50% de soluções, ainda estão por inventar e é aí que a inovação e novas tecnologias desempenham um papel crucial.

Na Veolia, estamos muito focados nesse desenvolvimento. Temos 14 centros de investigação espalhados pelo mundo, com mais de 600 pessoas dedicadas à inovação, entre investigadores e doutorados. Além disso, colaboramos com universidades e outros centros de pesquisa para criar um ambiente propício ao surgimento dessas novas tecnologias.

Hoje, a Veolia detém mais de 5 mil patentes em várias áreas e, sempre que surge algo novo, temos a capacidade de disseminar rapidamente essa inovação em todas as nossas operações, em diferentes regiões. Esta agilidade é essencial para avançarmos na transição energética.


Este conteúdo está inserido no projecto "Descarbonização: que caminho para Portugal?", que inclui ainda case studies de empresas nacionais e uma conferência dedicada ao tema da descarbonização em Portugal.

Saiba mais aqui.

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