Comemorar Camões, de novo
A iniciativa de assinalar os cinco séculos do nascimento do poeta não pode esgotar-se no registo oficial.
Depois de tanto ter já feito no passado, o que pode Camões ainda fazer por nós? O que pode o poeta fazer pela língua portuguesa e pelas culturas que nela se exprimem? Em que medida pode o legado camoniano contribuir para reforçar nos portugueses a consciência de uma pertença universal?
No quadro da celebração dos 500 anos do seu nascimento, importa tentar responder a estas e a outras questões.
É certo que a figura de Camões esteve sempre acima das diferenças que afetam a nossa vida coletiva. Não que a sua obra suscite a admiração fervorosa de toda a gente. Mas, pelo menos, a sua figura de poeta talentoso e incompreendido vem gozando de uma simpatia que cedo se converteu em força agregadora.
A iniciativa de assinalar a efeméride não necessita, por isso, de justificações alongadas. Basta invocar a qualidade da sua poesia, a renovação e projeção da língua portuguesa que dela derivou, a permanência da figura e da obra na Escola e no espaço cívico em geral.
A questão está em saber que objetivos devem procurar alcançar as comemorações. Camões tem vindo a ser evocado repetidamente: quer a propósito de datas biográficas e literárias (1880, 1924, 1972, 1980), quer em cada ano, no dia 10 de junho. A possibilidade de incorrer em rotinas é, por isso, muito forte. Tal como é normal a tentação de radicalizar alternativas.
O desafio deve ser o de encontrar um sentido equilibrado, que se ajuste à acentuada multiculturalidade que hoje caracteriza a nossa vida coletiva.
Nessa medida, a iniciativa de assinalar os cinco séculos do nascimento do poeta não pode esgotar-se no registo oficial. Deve exceder esses limites e ocorrer em estreita colaboração com as muitas entidades e pessoas para quem Camões (o seu legado e a sua figura) continuam a ser objeto de pesquisa, de apreço racional ou emocional ou ainda de simples curiosidade. Penso nas instâncias académicas, nas autarquias, nas comunidades artísticas, mas não esqueço o cidadão comum.
O Programa das comemorações oficiais será objeto de apresentação pública nos primeiros dias de novembro. As atividades que nele se preveem decorrerão sobretudo em território nacional. Tanto quanto possível, porém, irão além dele, na tentativa de chegar, por exemplo, às comunidades portuguesas no estrangeiro.
A Comissão que o concebeu procurará dinamizar iniciativas próprias. Mas empenhar-se-á também em acolher e enquadrar ideias e ações que lhe sejam apresentadas. Assim vem acontecendo já, através do apoio concedido a muitas iniciativas que vêm tendo lugar: em Portugal, no Brasil e em vários outros países.
Nesse intuito mobilizador, contará a participação das universidades que investigam e ensinam. Importará igualmente o contributo de Academias, Fundações e outras entidades vocacionadas para a reflexão histórico-cultural, para a promoção da língua, da literatura e das culturas de língua portuguesa.
Não pode esquecer-se, contudo, que a relação dos portugueses com Camões começa na Escola. É nesse espaço que tudo ou quase tudo se decide. Basta essa circunstância para que o Programa das comemorações assuma o ensino como área central. Nessa medida, não faltarão iniciativas destinadas a debater e a melhorar a forma como os/as adolescentes se encontram com os textos camonianos e a figura do poeta em geral.
Existem, desde logo, experiências pedagógicas boas e fecundas, que importa identificar e dar a conhecer. Mas é importante reconhecer que existe um horizonte geral de aperfeiçoamento. Falo sobretudo das mudanças que, envolvendo professores/as e alunos/as, ocorrem em termos de interesses, qualidade de atenção, suportes e procedimentos de leitura. Os objetivos e métodos de ensino não podem deixar de refletir essas novas realidades, que envolvem os conteúdos camonianos como envolvem a didática das matérias humanísticas no seu todo.
Por último, é decisivo que as comemorações construam um rasto útil. A relação dos portugueses com Camões é muito antiga. Tão antiga e tão arreigada que é razoável acreditar que não cesse em junho de 2026, data em que terminam as celebrações oficiais. É preciso criar condições para que esse convívio se prolongue da melhor forma possível: como os portugueses e as portuguesas quiserem e precisarem, em cada momento do seu futuro. Só assim será possível comemorar Camões... de novo.
O autor escreve segundo o Novo Acordo Ortográfico