A inteligência artificial no centro de dois Prémios Nobel – da Física e da Química

Estes prémios reforçam o reconhecimento da IA como um tema fundamental da nossa sociedade, também presente em áreas de investigação fundamental como a física e a química.

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Na segunda-feira, o mundo foi surpreendido com a atribuição do Prémio Nobel da Física a dois trabalhos que estiveram na origem das redes neuronais profundas, a técnica mais potente da inteligência artificial (IA) atual. Nesta terça-feira, a surpresa não terá sido menor ao ter sido anunciado o Prémio Nobel da Química para dois trabalhos que usam essa mesma técnica de IA, aplicada ao estudo de proteínas.

O Nobel da Física contemplou John Hopfield e Geoffrey ​Hinton, por descobertas fundamentais que permitiram aprendizagem automática com redes neuronais artificiais. Em termos práticos, estas descobertas estiveram na origem do desenvolvimento das redes neuronais profundas, que estão na base, por exemplo, do ChatGPT, a referência popular para o que há de mais avançado atualmente IA.

Foram umas ligas de materiais, conhecidas pelo nome “vidro de spin”, que desafiam as propriedades dos materiais magnéticos convencionais, a inspirar John Hopfield a criar uma rede de neurónios artificiais com propriedades muito interessantes e invulgares. Por exemplo, estas redes podem ser treinadas para reconhecer imagens e depois, quando lhes apresentamos uma imagem semelhante a uma original, ou a mesma imagem original, mas deteriorada ou incompleta, a rede reconstrói a imagem original. Em informática este tipo de dispositivo denomina-se “memória endereçável pelo conteúdo”, porque em vez de pedirmos à memória “dá-me o conteúdo da posição x”, pedimos “dá-me o conteúdo que tens mais parecido com x”.

O trabalho de Geoffrey ​Hinton, segundo o próprio, surgiu de uma ideia que ele teve quando assistiu a uma apresentação das redes de Hopfield. A invenção de Hinton, desenvolvida com outros colegas, consiste num tipo de redes, denominadas “máquinas de Boltzmann” que, em certas configurações, permitem não só aprender e identificar padrões, como gerar padrões semelhantes àqueles com que foram treinadas. E foi ao agrupar diversas destas redes em vários níveis que se formaram das primeiras redes (neuronais artificiais) profundas.

As redes profundas atuais, sobre as quais funciona o tal ChatGPT e outros semelhantes, já não são constituídas pelas redes inventadas pelos atuais laureados com o Nobel da Física. Entretanto, surgiram redes mais eficientes e mais rápidas. Mas isso não tira qualquer mérito aos seus trabalhos, essenciais para o que foi desenvolvido posteriormente.

No Nobel da Química foram contemplados David Baker em conjunto com Demis Hassabis e John Jumper, pelos trabalhos sobre a construção de novas proteínas e sobre a previsão de estruturas de proteínas, respetivamente.

David Baker criou recentemente o RFdiffusion, um modelo de redes neuronais profundas para criar novas proteínas. Segundo o laboratório deste investigador, o RFdiffusion funciona de uma maneira semelhante ao conhecido DALL-E, que produz imagens que nunca existiram combinando conceitos visuais de outras imagens que conhece. O RFdiffusion conseguiu aumentar enormemente a capacidade de construir novas proteínas, usando ideias de Baker que em 2003 lhe permitiram criar uma proteína que até então não se conhecia.

Demis Hassabis e John Jumper foram os principais autores de um modelo de IA construído em 2020 com redes neuronais profundas, denominado AlphaFold2. Este modelo foi projetado para fazer a previsão da estrutura de proteínas, um problema muito difícil, em que os resultados mais interessantes vinham surgindo recentemente a um ritmo moderado. Desde essa altura, o AlphaFold2 previu virtualmente todos os 200 milhões de proteínas conhecidas pelos investigadores e é uma ferramenta de acesso livre.

Um outro aspeto curioso dos Prémios Nobel da Física e da Química agora atribuídos é a interdisciplinaridade dos premiados e das suas descobertas. John Hopfield é professor emérito de neurociências, física e biologia molecular, enquanto Geoffrey ​Hinton é licenciado em psicologia e doutorado em inteligência artificial. David Baker é bioquímico com especialização em biologia computacional e em biofísica. Demis Hassabis é formado em informática e tem o doutoramento em neurociências. John Jumper tem um mestrado em física e um doutoramento em química.

Os trabalhos dos premiados em física utilizaram modelos da física estatística para desenvolver modelos parciais do funcionamento do cérebro, o que é mais evidente nas redes de Hopfield, e vieram a constituir modelos importantes na informática, em particular na área da inteligência artificial.

Os trabalhos dos premiados em química utilizaram a inteligência artificial como uma ferramenta extremamente poderosa para resolver problemas de química, de uma maneira que há poucos anos não se antevia sequer. Estes estudos detalhados de proteínas têm um potencial enorme na saúde e na ecologia.

É curioso verificar a IA com um papel relevante em ambos os prémios, se bem com posições diferentes em cada um. No Prémio Nobel da Física, a IA surge como o alvo da aplicação de conceitos de física, enquanto no Prémio Nobel da Química a IA surge como uma ferramenta que é aplicada em problemas de química. O certo é que, em conjunto, estes prémios reforçam o reconhecimento da IA como um tema fundamental da nossa sociedade, também presente em áreas de investigação fundamental como a física e a química. É uma ferramenta poderosa, que continua em desenvolvimento e, quando bem utilizada, consegue ajudar-nos a atingir feitos notáveis.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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