Ultrapassagem dos 1,5 graus tem “consequências irreversíveis”, mesmo que a temperatura volte a baixar

Há “excesso de confiança” em modelos climáticos que aceitam a ultrapassagem dos 1,5 graus, confiando em técnicas de remoção de carbono para baixar a temperatura global no fim do século, diz estudo.

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Cientistas defendem que a redução drástica de emissões no presente é mais eficaz do que adiar a neutralidade carbónica OGNEN TEOFILOVSKI/REUTERS
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Cada vez mais são considerados cenários futuros em que o limite de 1,5 graus Celsius é ultrapassado de forma transitória, ou seja, haveria um sobreaquecimento global que, mais tarde, seria revertido com técnicas de remoção de carbono da atmosfera. Estas “narrativas da ultrapassagem”, se postas em prática, podem implicar “consequências irreversíveis”, mesmo que os termómetros da Terra voltem a baixar no fim do século, alerta um estudo publicado esta quarta-feira na revista científica Nature.

O estudo sublinha que a redução rápida das emissões a curto prazo é o caminho mais eficaz para reduzir riscos climáticos. “É importante que consigamos chegar perto da neutralidade carbónica o mais rapidamente possível”, alertou o co-autor Joeri Rogelj, director de investigação do Instituto Grantham do Imperial College London, numa conferência de imprensa online do grupo Nature.

Os autores do artigo da Nature referem que há incertezas sobre como (e se) o planeta poderá recuperar de uma ultrapassagem dos limites de temperatura acordados em 2015, em Paris, na célebre Conferência do Clima das Nações Unidas desse ano. O sistema terrestre tal como o conhecemos hoje, rico em biodiversidade e reservas de carbono, não seria o mesmo após uma ultrapassagem destas metas climáticas.

“Este estudo elimina qualquer noção de que a ultrapassagem do pico de aquecimento teria um resultado climático semelhante a um futuro em que tivéssemos garantido, mais cedo, o limite do aquecimento a 1,5 graus Celsius”, refere Carl-Friedrich Schleussner, primeiro autor do estudo e director do grupo de impactos climáticos integrados no Instituto Internacional de Análise de Sistemas Aplicados, na Áustria, citado num comunicado.

O artigo sugere que há parâmetros climáticos que são mesmo irreversíveis, como o nível médio do mar ou a biodiversidade terrestre ou marinha. Espécies extintas não voltarão a existir só porque as temperaturas desceram. E o oceano não recuará subitamente, uma vez que a água apresenta grande inércia térmica (ou seja, demora a aquecer e a expandir, mas, uma vez iniciado, este processo é de difícil controlo).

À luz das consequências previstas no estudo, a ultrapassagem transitória das metas climáticas pode ser comparada à percepção de que podemos comer em excesso e inverter o peso corporal mais tarde, sem quaisquer consequências. Contudo, as alterações metabólicas e os problemas de saúde entretanto desenvolvidos podem não ser facilmente reversíveis. Para algumas pessoas, as estrias ficarão para sempre. Para outras, a obesidade mórbida ou a diabetes pode conduzir a um fim trágico antes mesmo de a perda de peso ocorrer. Do mesmo modo, os autores afirmam que “a reversibilidade dos impactos [climáticos] não é um dado adquirido”.

O estudo recorda ainda que a ideia da ultrapassagem transitória das metas climáticas deve ter uma dimensão ética: “Numa perspectiva de justiça climática, a ultrapassagem implica impactos socioeconómicos e danos associados ao clima que são tipicamente irreversíveis e afectam mais severamente as pessoas empobrecidas”.

“Se temos uma população que é exposta ao calor extremo durante um período e não tem capacidade de adaptação, isto não é uma situação reversível”, exemplifica Joeri Rogelj.

Num comentário publicado na mesma edição da Nature, Nadine Mengis considera “demasiadamente optimista” a ideia de compensar mais tarde o excesso de emissões recorrendo a técnicas de remoção de carbono. “Embora um modelo de dívida e reembolso funcione bem para as moedas monetárias, é improvável que o mesmo esquema funcione para um orçamento de carbono e para o sistema climático”, afirma a investigadora do centro alemão de investigação oceânica Geomar, em Kiel.

Nadine Mengis escreve ainda que a mensagem principal do trabalho liderado por Schleussner “continua a ser a mesma que a de praticamente todos os estudos sobre alterações climáticas: a redução das emissões deve ser acelerada o mais rapidamente possível.” E questiona, por isso, se “a energia gasta a engendrar narrativas sobre a ultrapassagem [dos 1,5 graus Celsius] não estaria a ser mais bem gasta noutro lado”.

Diferentes cenários futuros

Para prever cenários futuros, os autores fizeram simulações de modelos de trajectórias de ultrapassagem e de estabilização climática a longo prazo. E concluíram que, mesmo no caso de uma ultrapassagem dos 1,5 graus Celsius, vale a pena tentar inverter a tendência de aquecimento apostando em obter emissões líquidas negativas a nível mundial.

“Cada 100 anos de ultrapassagem acima de 1,5 graus Celsius conduz a um compromisso adicional de subida do nível do mar de cerca de 40 centímetros até 2300”, lê-se no artigo científico.

Embora os autores critiquem a ideia de que podemos ser pouco ambiciosos nas reduções de emissões – noção que revela um excesso de confiança em soluções capazes de limpar a atmosfera até ao fim do século –, eles não deixam de ver utilidade em tais tecnologias. Estas estratégias incluem, por exemplo, captura e armazenamento de carbono no subsolo ou uma gestão cirúrgica de ecossistemas para aumentar a capacidade de a biomassa absorver carbono.

O estudo defende tecnologias de remoção de carbono, “em escala e ambientalmente sustentáveis”, como aliadas da diminuição drástica de emissões líquidas. Os autores identificam “a necessidade geofísica de uma capacidade preventiva de remoção de dióxido de carbono de várias centenas de gigatoneladas”.

Existem, no entanto, incertezas sobre a capacidade técnica e económica que a humanidade terá para concluir uma tarefa desta envergadura, sugere o artigo. E daí que prevenir emissões hoje é melhor do que remediar amanhã o carbono que já foi lançado para a atmosfera, garantem os autores.

“Não há forma de excluir a necessidade de grandes quantidades de capacidades de emissões líquidas negativas, por isso precisamos efectivamente de minimizar as nossas emissões residuais. Não podemos desperdiçar a remoção de dióxido de carbono para compensar as emissões que temos a capacidade de evitar”, refere o co-autor Gaurav Ganti, analista de investigação da Climate Analytics, numa nota de imprensa do Imperial College.

Intitulado “Excesso de confiança na ultrapassagem das metas climáticas”, o novo estudo resulta de um projecto desenvolvido pelos 30 cientistas, ao longo de três anos e meio, com o apoio do fundo europeu de inovação Horizon 2020.