Celebrar a arquitetura
O Inquérito à Arquitectura Regional Portuguesa (IARP), de 1955-1961, foi um dos projetos mais relevantes para o estudo da arquitetura vernacular em Portugal. Hoje, o documento continua a ser uma referência e serve não apenas como documentação histórica, mas também como fonte de inspiração para a arquitetura contemporânea que, em Portugal, se carateriza pelo equilíbrio entre a inovação e o respeito pelo lugar e pela sustentabilidade.
Um trabalho único, inquestionável, coordenado por Keil do Amaral, que se fez acompanhar de dezenas de arquitetos divididos em seis zonas (Minho, Trás-os-Montes, Beiras, Estremadura, Alentejo e Algarve) e em que se incluíam Fernando Távora, Octávio Lixa Filgueiras, Nuno Teotónio Pereira, Frederico George, Artur Pires Martins, José Huertas Lobo, Celestino de Castro. Permito-me apenas destacar dois nomes que, felizmente, se encontram ainda entre nós e ativos, a saber, Francisco Silva Dias e António Menéres. As equipas percorreram as áreas rurais e pequenas localidades. Cada zona foi estudada quanto aos materiais de construção utilizados conforme os recursos naturais disponíveis. Mas também foi analisada a organização espacial das habitações, a distribuição de compartimentos, as formas de cobertura, as varandas, pátios e outras caraterísticas distintivas.
Embora Salazar desconfiasse das motivações dos protagonistas, já que os seus protagonistas estavam claramente ligados a movimentos democráticos, acreditou que este tipo de iniciativa resultaria numa ferramenta útil ao seu desiderato. A ideia de um inquérito ao vernáculo foi antecipada como alinhada com a política cultural do Estado Novo, que exaltaria a tradição rural e a “portugalidade” num reforço ideológico da abordagem conservadora, assente na tradição, procurando uma singularidade nacional entre os modelos de governo nacionalistas da Europa. Este retrato do país rural e tradicional que o Estado Novo procurava defender, em oposição ao que considerava ser a decadência da vida urbana e industrial, que simbolizaria a desordem e os perigos da modernidade, serviria também como instrumento de propaganda cultural.
Acontece que o inquérito viria a demonstrar uma diversidade arquitetónica assinalável, afastando inequivocamente a conceptualização prévia de um conflito entre Modernidade e Tradição.
Foi exatamente esse equilíbrio entre história, presente e futuro que nos impeliu a celebrar o Mês de Arquitetura de 2024, que decorre durante outubro, com o lançamento desta publicação histórica, em versão fac-similada, replicando a tão valiosa versão original, promovendo-a junto de todos os cidadãos atentos e interessados nos elementos fundamentais da cultura portuguesa. A parceria com o PÚBLICO, membro honorário institucional da Ordem dos Arquitectos, que tanto tem contribuído para a divulgação e valorização da Arquitetura, é o pretexto ideal para a difusão dos inúmeros eventos outonais que tem a Arquitetura como tema central.
A exposição Fernando Távora. Pensamento Livre, que decorre no Salão Nobre do Palácio de São Bento. Fernando Távora foi uma figura maior da Arquitetura do século XX, e foi um dos principais protagonistas do IARP. Expor o trabalho do mestre na casa da democracia é um tributo tão justo quanto merecido, ainda mais porque foi dele o projeto do novo edifício, apenso ao Palácio de São Bento, com uma sobriedade intemporal e definindo o jardim da Praça da Constituição. A Ordem dos Arquitectos acrescenta ainda à recordatória essencial de Fernando Távora o prémio com o seu nome, que promove o estudo e conhecimento da Arquitetura através da viagem. A cerimónia será a norte, onde vivia, ensinava, trabalhava e nos encantava com o seu saber.
A União internacional dos Arquitetos definiu este ano um tema ambicioso para o Mês da Arquitetura: incentivar os jovens arquitetos a comprometerem-se com processos participativos, contribuindo com novas perspetivas, fundamentais para o desenvolvimento sustentável. Adequa-se ao contexto nacional, em que mais de 50% dos arquitetos portugueses têm menos de 40 anos, revelando uma profissão jovem e ambiciosa. Importa dar oportunidade ao talento e é nesse contexto que se lançará neste mês de outubro a 2.ª edição do Prémio Manuel Graça Dias, DST – Ordem dos Arquitectos, Primeira Obra, que visa divulgar as obras de qualidade dos mais jovens arquitetos.
O Mês da Arquitetura não poderia deixar de incluir um tributo especial e inovador, com a exposição Arquitetas da nossa casa, em que se convocam as arquitetas a apresentar os seus projetos, ideias, testemunhos pessoais e percurso profissional. O evento permite dar visibilidade à prática desenvolvida, no momento atual, proporcionando um espaço de reflexão e debate, mas também de reconhecimento e celebração dos seus mais diversos percursos. Será em Coimbra, quase no final de outubro, na Casa das Caldeiras com uma conversa prévia em Lisboa.
O contexto internacional e europeu da Arquitetura não ficará fora deste valioso mês. Assim, a European Network of Architects’ Competent Authorities (ENACA) fará a sua assembleia em Lisboa e permitirá que os dirigentes europeus, liderados pela presidente do Conselho de Arquitetos da Europa, Ruth Schagemann, se inteirem dos problemas prementes da profissão, recolhendo, como sempre acontece, o empenhado contributo dos arquitetos portugueses para o projeto europeu. O debate será aberto e ocorre na sede da Ordem dos Arquitectos, que nessa semana acolhe e inaugura uma exposição sobre os 30 anos do edifício-sede.
A sul, na cidade de Loulé, ocorrem as segundas Jornadas Internacionais de Arquitetura do Algarve com dois dias recheados de debates atuais e relevantes, centrados nos instrumentos de planeamento e na legislação urbanística. E serão muitas mais as atividades da Ordem dos Arquitectos, no Porto, em Braga, em Évora, em Santiago do Cacém, em Castelo Branco, no Funchal, em Ponta Delgada e até na ilha do Pico, onde a Arquitetura estará presente em debates, colóquios e exposições – a informação está disponível nas redes institucionais.
Encerramos com a Sessão Solene de atribuição do Título de Membro Honorário da Ordem dos Arquitectos, que representa um momento sólido de agradecimento a personalidades e instituições que contribuem para promover a excelência da Arquitetura portuguesa. E a memória do “Inquérito”, nome que os arquitetos familiarmente utilizam quando se referem ao IARP, impõem-nos responsabilidade. Os arquitetos portugueses conseguiram, nas décadas de 50 e 60, construir uma visão progressista através dos condimentos da tradição. Sem outras ferramentas, é a assinalável capacidade dos protagonistas desse tempo que evidencia o engodo que os arquitetos infligiram aos preconceitos conservadores de então. Através da criatividade e do conhecimento, conseguiam fazer da Arquitetura uma peça fundamental da contemporaneidade.
Compete-nos a todos nós, como compromisso de cidadania e cultura, honrar esse legado, respeitando, valorizando e celebrando a Arquitetura.