Relatório Draghi – o acordar do tigre europeu

As recomendações de Draghi são transponíveis para Portugal, onde os problemas europeus são mais profundos. Este é o momento para incentivar o lado do país que sonha e quer agir.

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Vivemos um dos momentos mais transformadores da história recente: uma tripla transição que está a redefinir o mundo. Primeiro, ao fim de 35 anos de globalização, a pobreza global caiu de forma impressionante, mesmo com o aumento exponencial da população. Em 1820, 89% da população mundial vivia na pobreza; em 2015, a percentagem era de apenas 10% – uma evolução só possível devido à enorme criação de riqueza. Em segundo, temos em curso uma transição digital, acelerada pela inteligência artificial, que marca o fim da revolução industrial, iniciada há 275 anos. Finalmente, enfrentamos a transição energética, impulsionada pela crescente consciência sobre a crise climática, que está a pressionar o fim do recurso aos hidrocarbonetos, a base do desenvolvimento da humanidade até hoje.

O Relatório de Mario Draghi (e, antes dele, o de Enrico Letta) chega em boa hora porque faz o diagnóstico claro e factual de uma Europa que tem perdido competitividade e liderança, oferecendo todavia esperança, ao apontar as principais alavancas para a sua recuperação. É um grito de alerta para acordar o tigre europeu que só atua em conjunto em crises existenciais.

O relatório é claro: o crescimento económico no bloco europeu abrandou e a União Europeia (UE) perdeu competitividade em relação aos EUA e à China, sendo urgente agir rapidamente. Nos últimos 20 anos, o crescimento anual médio da UE foi de 1,4%, muito abaixo dos 2% dos EUA e dos impressionantes 8,3% da China. Portugal, ficou ainda mais para trás, crescendo menos de 1% por ano – apenas a 57% do ritmo europeu.

As diferenças de crescimento refletem-se também na lista das maiores empresas globais: a empresa da UE com melhor posição no ranking Global 2000 da Forbes de 2024, a Total, surge apenas na 25.ª posição. No top 30, há 16 empresas americanas, seis chinesas e apenas uma da UE. A primeira empresa portuguesa no ranking, a EDP, aparece no 614.º lugar. O Santander, a maior empresa espanhola, surge na 36.ª posição, sendo 8,4 vezes maior do que a EDP. Com pouco menos de uma centena de empresas acima dos 750 milhões de euros, segundo o acordo do G20 para o IRC mínimo global, Portugal tem um problema de escala ainda maior do que a Europa.

É urgente recuperar a competitividade e a produtividade da UE para garantirmos maior rendimento às empresas e às famílias. Draghi propõe, e bem, seis ideias-chave.

Para crescer, a Europa precisa de 1) encorajar e celebrar o sucesso individual e coletivo, e incentivar o ganho de escala das suas empresas. A Europa deve revisitar a sua doutrina e prática de concorrência, que impende a formação de campeões europeus, e apoiar o crescimento, mobilizando fundos públicos e privados, como fazem os seus concorrentes. A carta de missão para a nova comissária Teresa Ribera e as suas primeiras declarações vão no bom sentido. Também o Bruegel Institute defende que é essencial termos empresas europeias fortes para financiar a inovação, nomeadamente em áreas como a inteligência artificial, de onde a Europa decidiu autoexcluir-se. Não devemos subestimar o impacto do aspeto cultural – a cultura europeia precisa mudar e dar mais valor a quem arrisca e faz, tal como acontece nos EUA, onde o risco é incentivado e o falhar é visto como uma etapa natural do processo de aprendizagem e crescimento.

E 2) é fundamental acelerar a inovação. Apesar de a Europa gerar boas ideias e ter uma investigação de qualidade, as universidades americanas e chinesas são quem melhor tem sabido transformar o conhecimento em riqueza, comercializar a inovação. Muitos dos empreendedores e unicórnios portugueses optam por emigrar, preferindo procurar financiamento junto de fundos de capital de risco americanos e converter as suas ideias em riqueza do outro lado do Atlântico.

O relatório alerta ainda para a urgência de 3) requalificar os trabalhadores face à escassez de competências da força laboral europeia para assegurar a transição digital e energética. A população ativa europeia está em queda acentuada, pelo que, para potenciar a competitividade, terá que haver uma forte aposta nos ganhos de produtividade – só possível com mais e melhores competências e qualificações em setores como o tecnológico e o da inteligência artificial.

E porque a escala importa muito, é crucial 4) acelerar a construção do mercado único, eliminando a fragmentação de mercado e regulatória que penaliza a produtividade e trava a inovação. Atualmente vivemos uma proliferação de leis de ordenamento e de reguladores nos diferentes Estados-membros. No setor tecnológico, por exemplo, há mais de 100 leis comunitárias e 270 reguladores ativos –​ fatores que dificultam o desenvolvimento do setor, elevam os custos de compliance e incentivam a relocalização de empresas para mercados maiores e com ónus regulatórios e legais menos pesados. A nova comissária portuguesa terá a difícil missão de criar um verdadeiro mercado único com capacidade para financiar os 800 mil milhões de euros de investimentos necessários para acelerar a dupla transição e relançar a competitividade da economia europeia.

Para sermos competitivos precisamos de 5) voltar a ter energia a preços competitivos. As empresas da UE enfrentam preços de eletricidade que são duas a três vezes mais elevados do que nos EUA e preços do gás natural quatro a cinco vezes maiores. Com o tempo, a descarbonização ajudará a direcionar a geração de energia para fontes de energia limpa seguras e de baixo custo. Enquanto isso, a concorrência chinesa é feroz e beneficia de políticas industriais massivas, subsídios, inovação rápida, controlo de matérias-primas e capacidade de produção em larga escala. A Europa precisa de adotar rapidamente estratégias claras e eficazes para manter a sua liderança, reduzir dependências energéticas e ter custos de energia competitivos.

Finalmente, o relatório reforça a necessidade de uma 6) Europa coesa, capaz de navegar e de se afirmar num contexto geopolítico cada vez mais instável, e de reduzir dependências estratégicas, sejam elas de matérias-primas, energia, segurança ou de mercados.

O diagnóstico do relatório Draghi é claro, mas, como todos os diagnósticos, é apenas um ponto de partida. O verdadeiro desafio está na implementação das suas recomendações. Muitos dos temas não são novos, mas o relatório tem o mérito de tornar evidente a urgência de agir. Com uma nova Comissão Europeia, o documento oferece uma excelente oportunidade para se definir e cumprir um destino mais promissor para a UE, haja coragem para repensar o governo das instituições europeias e a obsessão regulatória.

As recomendações de Draghi são também transponíveis para Portugal, onde os problemas europeus são mais profundos. O país precisa de promover urgentemente o crescimento e a escala das empresas, de incentivar o investimento, mobilizar os fundos para setores estratégicos e inovadores, requalificar os portugueses e ser um ator ativo e relevante na transição energética da Europa.

Temos vindo a assistir a um país a duas velocidades. Um lado cada vez mais estatizado, conservador e resistente à mudança. Outro mais empreendedor, que arregaça as mangas e faz acontecer. Nos últimos 15 anos provámos, por várias vezes, que somos capazes de fazer grandes mudanças: criámos sete unicórnios, um número maior do que Espanha e Itália juntas; aumentámos as exportações de 30% para 50% do PIB; e colocámos o turismo a crescer quase 9% ao ano em valor, enquanto a economia crescia apenas 1%. Este é o momento para incentivar o lado do país que sonha e quer agir, para acelerar a transição necessária para colocar Portugal e a Europa na linha da frente. Portugal e a Europa podem e devem ser muito melhores!

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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