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Telenovelas brasileiras transcendem fronteiras e ditam costumes. E Portugal adora
Brasil exportou uma série de novelas para Portugal, que influenciaram a cultura lusitana, inclusive com adoção de nomes de personagens para os filhos. Gabriela, de Jorge Amado, foi um marco.
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Em agosto deste ano, as ruas de Lisboa, Porto e Linhares da Beira foram tomadas por câmeras e atores da TV Globo. Era o início das gravações de Mania de Você, a atual novela das nove da maior produtora de audiovisuais da América Latina. A obra mostra a dura realidade de brasileiros que emigram.
O casal Cristiano (Bruno Montaleone) e Michele (Alanis Guillen) deixam o emprego em um resort em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, para trabalhar em Portugal, mas os dois acabam sendo vítimas de um esquema. Já Rudá (Nicolas Prattes), um ativista ambiental, foge para o país, depois de se tornar suspeito de um crime. Em território luso, terá nova identidade e vai trabalhar num emprego clássico de imigrante: um restaurante.
Este é só mais um capítulo da emocionante história das telenovelas brasileiras com os portugueses. Tudo começou em 1975, com a exibição de Gabriela, Cravo e Canela, logo após a queda da ditadura em Portugal. A trama, com suas histórias de amor, paixão e liberdade, foi vista como um símbolo da nova era que se iniciava no país. Gabriela se tornou um fenômeno cultural, influenciando a moda, a música e até mesmo o vocabulário português.
É o que diz Isabel Ferin Cunha, da Universidade de Coimbra, na pesquisa A revolução da Gabriela: o ano de 1977 em Portugal. Existe um fascínio que os portugueses nutrem pelas telenovelas. Mais do que simples entretenimento, essas produções têm impacto significativo na sociedade portuguesa, moldando comportamentos, influenciando costumes e até mesmo inspirando nomes para bebês.
Em Portugal, a escolha dos nomes dos filhos pelos pais é regida por regras estabelecidas pelo Instituto dos Registros e do Notariado (IRN). As regras visam assegurar que os nomes escolhidos sejam apropriados e estejam em conformidade com a tradição e a cultura portuguesa. Nomes como Jade (personagem de O Clone), Gabriela (personagem de Jorge Amado) e até Sandra Brea (atriz brasileira que brilhou em novelas como O Bem Amado) já são comuns na realidade atual portuguesa.
Furacão
Gabriela levou milhões de lusitanos para a frente da TV e deixou as ruas vazias. Um fenômeno tão comum no Brasil, mas fato inédito para os portugueses. Em 2000, em entrevista ao CM Jornal, Edite Estrela, ex-deputada do Parlamento Europeu e linguista, destacou que "havia muita receptividade para novidades, especialmente nos costumes e hábitos", logo após o fim da ditadura em 1974. A personagem Malvina, interpretada por Elizabeth Savalla, influenciou a moda com seu corte de cabelo moderno para a época.
Simone de Oliveira, cantora, atriz e apresentadora de TV em Portugal, mencionou na mesma reportagem que Gabriela ajudou a incorporar expressões e uma forma de falar mais descontraída. Foi o início da invasão do português brasileiro na terra de Camões. A novela também foi a porta de entrada para outras produções, bem como fez disparar as vendas dos livros de Jorge Amado.
Ao longo dos anos, diversas novelas brasileiras conquistaram o público português, alcançando altos índices de audiência e se tornando parte da cultura popular. Um estudo realizado pela TV Globo, em 2022, aponta as novelas de maior sucesso em Portugal: Gabriela (1977); Roque Santeiro (1987); Rei do Gado (1996); Terra Nostra (1999); Laços de Família (2000); Chocolate com Pimenta (2004); Alma Gêmea (2005); Avenida Brasil (2012); Amor à Vida (2013); Êta Mundo Bom (2020). Com mais de 150 histórias exibidas pelos canais portugueses, a emissora brasileira lidera a veiculação de telenovelas em terras lusitanas.
O sucesso das novelas brasileiras abriu a porta dos estúdios a atores portugueses. Isso foi constatado pela pesquisadora Elaine Javorski, da Universidade Federal do Maranhão, no artigo acadêmico Portugueses na telenovela brasileira: um panorama histórico. Diz um trecho: “As conclusões apontam para um crescimento na utilização de personagens portugueses, na medida em que se firmam parcerias para exportação das telenovelas e discretas mudanças em suas características, decorrentes da diferença dos perfis migratórios ao longo das décadas.”
Nesta segunda década do século XXI, assistimos a um processo inverso. Como parte integrante da terceira onda de imigração brasileira para Portugal, que tem entre suas características a presença de profissionais com maior grau de instrução e de renda mais elevada, o fluxo de artistas brasileiros trabalhando em produções lusitanas está aumentando. É caso de Luana Piovani, Chico Diaz, Úrsula Corona, Paola Oliveira e Caio Blat (esses últimos escalados para a segunda temporada de Rabo de Peixe, a minissérie portuguesa de maior sucesso na Netflix).
Estrutura sólida
Atriz conhecida de diversas novelas no Brasil e em Portugal, Úrsula Corona também é CEO do Instituto Fome de Tudo, em que lidera iniciativas em prol da segurança alimentar e do combate ao desperdício. Em conversa com o PÚBLICO Brasil, ela reflete sobre sua trajetória na televisão brasileira e a evolução da indústria. A artista, que teve a oportunidade de trabalhar com grandes nomes da teledramaturgia, destaca a importância dos mestres que a formaram e moldaram sua carreira. “Foi muita sorte ter a oportunidade de trabalhar com nomes como Paulo Ubiratan”, diz.
A atriz ressalta que a televisão brasileira possui uma base sólida construída por grandes profissionais e que, ao analisar a trajetória da telenovela, percebe-se uma evolução constante, adaptada às mudanças culturais de cada país. Em Portugal, ela foi convidada para viver o desafio de dar vida a uma vilã na novela Sol de Inverno, da emissora SIC. Posteriormente, participou da novela vencedora do Emmy Internacional de 2018, Ouro Verde, e também de Na Corda Bamba, ambas da TVI.
A atriz brasileira aborda a transformação no consumo de conteúdo audiovisual: “Hoje em dia, temos mais possibilidades de consumir e compartilhar conteúdos.” Úrsula cita a facilidade de se conectar e compartilhar informações por meio de plataformas digitais, destacando o papel da televisão como um meio de entretenimento e lazer. “A televisão tem a capacidade de levar as pessoas para um lado lúdico”, afirma, destacando a diversidade de formatos e plataformas disponíveis atualmente, permitindo que o público escolha o que assistir, quando e onde quiser.
Ao analisar a produção televisiva em diversos países, como Brasil, Portugal, México, Argentina e Espanha, Úrsula observa que o consumo de telenovelas continua forte. “A gente precisa se desligar da vida”, diz. Ela explica que a televisão oferece um momento de relaxamento e entretenimento. “O streaming é apenas mais uma forma de consumo de novelas. O Brasil sabe fazer novelas como ninguém”, assinala.
Força do streaming
Chico Diaz é um dos atores brasileiros mais conhecidos em Portugal. Ele já atuou em várias produções lusas, no cinema, na TV e no teatro. Fez Rei Lear (William Shakespeare) e, depois, Vermelho Monet, filmado em Lisboa, do diretor Halder Gomes. O longa foca em três personagens. O principal da narrativa é Johannes Van Almeida, um pintor que não é reconhecido no mercado e que está, pouco a pouco, perdendo a sua visão e a capacidade de enxergar as cores.
Ao analisar as influências do audiovisual brasileiro, Chico diz: “Acho que a forma inicial, a matriz de produção, foi o mais importante. As primeiras novelas portuguesas beberam do Brasil. Vários profissionais brasileiros foram trabalhar em Portugal. Posso citar alguns, como Maurício Farias e Aguinaldo Silva.” O ator se declara apaixonado por Portugal, onde foram apresentadas novelas da TV em que ele fez muito sucesso, como Gabriela e Paraíso Tropical.
Sobre o atual momento da produção audiovisual, Chico afirma: “Sou de uma época em que a internet não existia. Agora, as pessoas procuram nos seus nichos o que lhes interessa. Ou seja, realmente a questão das novelas arrefeceu. Digo por parte dos portugueses. Mas ainda sou reconhecido nas ruas. Então, penso que as novelas mais antigas marcaram uma geração de lusitanos.”
Sobre as novelas portuguesas, ele ressalta que as obras começaram a ter uma assinatura. “É muito mais nítida e muito mais firme no interesse de ganhar a população portuguesa. O audiovisual televisivo português cresceu muito”, frisa. Diante de tantas opções de canais, e com o aumento de imigrantes brasileiros vivendo em Portugal, é bem provável que cada vez mais venhamos a esbarrar com câmeras e atores brasileiros pelas ruas do país.