Carlos Moedas assumiu como compromisso eleitoral para Lisboa criar uma fábrica de unicórnios — empresas com um valor superior a mil milhões de dólares —, destacando-o como o maior investimento em inovação alguma vez realizado no país, num total de oito milhões de euros repartidos entre a autarquia e parceiros privados.
Era fácil antever que o seu projeto político para a cidade consistia no aprofundamento do caminho traçado pelo seu antecessor no município: governar em função de tudo o que é exterior – rankings, investidores, turistas, nómadas digitais – descurando os problemas que realmente afetam as vidas dos cidadãos lisboetas. Como o próprio afirmou, na sequência das Jornadas Mundiais da Juventude, que custaram mais de trinta milhões de euros à autarquia, “ser o centro do mundo tem um valor”.
É precisamente sobre esse valor que devemos refletir. Qual a fatura a pagar por décadas de desgoverno que privilegiaram os processos de especulação e financeirização urbana?
A principal fatura é a incapacidade de acesso de largas franjas de população ao mercado de habitação. Este é simplesmente inexistente para quem aufere dos salários mais baixos da União Europeia e vive na capital europeia onde os preços do imobiliário mais subiram na última década. Lisboa perdeu moradores (cerca de 545 mil habitantes entre 2011 e 2021, de acordo com os últimos censos) e na sua área metropolitana proliferam as situações de indignidade habitacional, que afetam já mais de 50 mil famílias. Os diversos instrumentos políticos que visaram a atracção de investimento estrangeiro, como a autorização de residência para atividade e investimento (Vistos Gold) ou o estatuto de residente não habitual (RNH), em conjunto com a permissividade fiscal e desregulação das atividades de alojamento local — que possibilitaram rentabilidades imobiliárias especulativas — traduziram-se na inflação do mercado imobiliário e numa crise habitacional cujas consequências se disseminaram a nível nacional.
O atual Governo, com o qual o autarca lisboeta partilha convicções políticas, pretende, em contracorrente com as medidas tomadas noutras cidades, recuperar algumas destas figuras e revogar as restrições e condições de expiração de licenças para alojamento local. As declarações de Carlos Moedas, numa entrevista à rádio Renascença, a propósito dos efeitos da proibição do alojamento local em Nova Iorque são paradigmáticas. Passo a citar: “Em Nova Iorque acabaram com o alojamento local. O que é que aconteceu? Os preços dos hotéis dispararam. E porque é que dispararam? Porque hoje, por exemplo, em Lisboa, 30% dos que nos visitam ficam em alojamento local. Se nós disséssemos ‘acabou’ para onde é que essas pessoas iriam?”.
O presidente da câmara de Lisboa parece estar mais preocupado em arranjar um teto acessível para quem visita a cidade do que para quem vive em Lisboa. É bom lembrá-lo que o seu mandato se destina a servir os eleitores desta cidade, não os clientes da Ryanair. Tão grave como esta declaração foi o recurso a um flagelo social, as pessoas em situação de sem abrigo — grande parte delas, imigrantes que trabalham e vivem em condições degradantes — como arma de arremesso político.
Acusar a extrema-esquerda (se é que existe) é uma forma populista de escamotear um problema gerado por opções de política económica, que visaram a mercantilização da cidade e a precarização das condições de vida de todas e de todos. Opções de política que contrariam as disposições do artigo 65.º da Constituição portuguesa, que atribui ao Estado a obrigação de estabelecer um sistema de renda tendencialmente compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria.
O valor social e económico a pagar por décadas de governo urbano assentes em políticas nefastas para o cidadão comum é elevado, com tendência para aumentar, à medida que a recusa em regular o mercado imobiliário e em aumentar salários se traduz em encargos de apoio social acrescidos para os contribuintes. Perante o cenário de dissolução que se sente a todos os níveis na cidade, seja na dificuldade em pagar a casa, seja na higiene urbana, seja no nível de ruído ou no caos que é a mobilidade urbana, exigia-se, no mínimo, bom senso nas declarações proferidas por responsáveis de cargos políticos. A falta dele implica também consequências nas ruas e nas urnas, mesmo para quem pensa governar desde o centro do mundo.