O planeta já perdeu 610 espécies de aves devido à acção humana. E pode perder mais

Estudo com autores portugueses indica que o impacto global da perda de avifauna causada pelos humanos é bem maior do que o previsto. Mais de 1300 espécies podem desaparecer nos próximos 200 anos.

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Ilustração de três espécies que foram extintas devido à actividade humana no Havai, incluindo o pássaro oó-de-kauai Julian P. Hume/DR
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A extinção de 610 espécies de aves, ao longo dos últimos 130.000 anos, causou prejuízos irreparáveis para além do desaparecimento desses seres vivos. Perdê-las significa perder também o papel de cada uma delas no funcionamento dos ecossistemas, assim como desperdiçar cerca de três mil milhões de anos de história evolutiva única, alerta um estudo publicado esta quinta-feira na revista Science.

“A principal mensagem do nosso estudo não é tanto os números, mas sim outros elementos de biodiversidade que estamos a perder. No passado, falava-se em 600 extinções porque a principal mensagem era que perder centenas de espécies não era uma coisa boa, obviamente, mas a verdade é que com elas perdemos muitas outras coisas. O facto de estas espécies terem um papel no funcionamento do ecossistema fez com que, com elas, perdêssemos a história evolutiva que elas representavam: é como perder ramos da árvore da vida”, afirma ao PÚBLICO Tom Matthews, da Universidade de Birmingham, no Reino Unido, primeiro autor do estudo.

Cada espécie pode desempenhar diferentes papéis num ecossistema, como o de predador ou de distribuidor de sementes ou pólenes, por exemplo. “Algumas aves controlam as pragas comendo insectos, as aves necrófagas reciclam a matéria morta, outras ingerem frutos e dispersam as sementes, permitindo o crescimento de mais plantas e árvores, e algumas, como os beija-flores, são polinizadores muito importantes”, observa o cientista britânico.

Os autores concluíram que a escala das extinções de aves até hoje resultou numa perda de 7% da diversidade funcional global desses animais. Esse valor é muito maior do que o esperado considerando o número de extinções conhecido.

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O dodó (Raphus cucullatus) é uma ave extinta que não voava e que era endémica da ilha Maurícia, no oceano Índico DR

Muitas das aves que desapareceram do planeta apresentavam características ímpares e, por isso mesmo, assumiam funções únicas nos ambientes que habitavam. “Uns eram muito grandes, outros tinham dietas especializadas ou não voavam, como é o caso das aves-elefante de Madagáscar”, exemplifica Tom Matthews, referindo-se à espécie extinta Aepyornis maximus.

As aves endémicas insulares sofreram, de resto, “perdas desproporcionais” em comparação com as demais: 489 das 610 espécies extintas globalmente tinham uma ilha como único habitat. Nos territórios insulares, cerca de 50% da diversidade funcional e filogenética da avifauna endémica já foi perdida ou está ameaçada, segundo o estudo. “Alguns já perderam quase todas as espécies de aves nativas”, escrevem os autores.

Participação portuguesa no estudo

O biólogo português Pedro Cardoso, co-autor do estudo da Science, concorda que a mensagem principal reside no impacto profundo que as extinções têm nos processos ecológicos. Contudo, o investigador acredita que é possível extrair do artigo uma outra mensagem, esta já relacionada com possíveis extinções futuras.

“O foco deste artigo é sobre as consequências ecológicas para além das próprias espécies em si, ou seja, sobre a perda de diversidade funcional e, consequentemente, também dos serviços ecossistémicos. Mas também é possível fazer o caminho inverso: usar os traços das espécies [actuais] para prever quais são as mais prováveis de se extinguirem no futuro”, afirma Pedro Cardoso ao PÚBLICO numa videochamada conjunta com Tom Matthews.

O investigador do Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais (CE3C), da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, dá um exemplo: se uma espécie é grande, só ocorre em florestas e demora 20 anos a atingir a maturidade, então poderá ter uma maior probabilidade de se extinguir.

As simulações elaboradas pelos cientistas prevêem que aproximadamente 1305 espécies de aves podem vir a ser consideradas extintas nos próximos 200 anos.

Entre os co-autores do estudo está ainda a portuguesa Filipa Coutinho Soares, investigadora do CE3C.

O conjunto de dados “mais completo”

Os cientistas recorreram a um extenso conjunto de dados – “o mais completo até hoje”, segundo uma nota de imprensa – que compila informação acerca de todas as extinções de aves conhecidas desde o Pleistoceno Final, período em que os humanos modernos começaram a dispersar-se pelo planeta, até ao Holoceno (ou seja, a actualidade).

O período escolhido – os últimos 130.000 anos – permite analisar as extinções causadas sobretudo por acções humanas: a introdução de espécies exóticas, a agricultura intensiva, a perda de habitat e, por fim, as alterações climáticas.

Os cientistas também estimaram futuros impactos ecológicos. Entre os efeitos secundários dessa redução violenta de diversidade funcional podem estar perturbações nos processos de polinização das flores, de dispersão de sementes e do controlo das populações de insectos (incluindo muitas pragas e vectores de doenças). Os autores também referem que a redução da avifauna global terá ainda, muito provavelmente, impactos na capacidade de muitas plantas resistirem às alterações climáticas.

“Os nossos resultados sublinham a necessidade urgente de compreender e prever os impactos das extinções antropogénicas passadas na função do ecossistema, para que possamos estar preparados para a magnitude da perda estimada de 1000 espécies de aves que se prevê nos próximos dois séculos. Esta informação é vital para a definição de objectivos eficazes para as estratégias globais de conservação, bem como para a recuperação dos ecossistemas e os esforços de renaturalização”, avisa Tom Matthews, citado numa nota da Universidade de Birmingham.