“Portugal tem vantagens competitivas na descarbonização”

Em entrevista, o presidente da APE - Associação Portuguesa da Energia, João Torres analisa o caminho feito pelo sector energético rumo à descarbonização.

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Olhando para o prefixo da palavra "descarbonização", poderíamos pensar que este é apenas um processo de exclusão, de retirada de algo de um sistema. Olhando, contudo, para a realidade do processo de descarbonização, torna-se flagrante a necessidade de incluir, adicionar. Seja conhecimento, tecnologia ou investimento, descarbonizar uma economia (ou várias, atendendo à escala global desta questão) implica cada vez mais olhar para soluções diversas e complementares.

Esta é uma visão que João Torres tem vindo a solidificar ao longo dos anos em que tem desempenhado várias funções no sector da energia, tendo para isso contribuído o seu historial em Engenharia Electrotécnica e em Gestão, além da experiência adquirida junto de empresas e instituições fulcrais da energia, nomeadamente a Associação Portuguesa da Energia (APE), à qual preside actualmente.

Como olha a APE para o imperativo da descarbonização?

É claro que temos um imperativo muito associado às alterações climáticas e à redução das emissões de CO2. Desde cedo, o sector energético percebeu que tinha de dar o seu contributo consciente de que, por pequenos que fossem os passos, era um contributo de grande impacto.

Esta tomada de consciência aconteceu já há muitos anos, até porque é um sector que investe muito em inovação e em novas tecnologias. Aliás, a associação acompanha muito de perto os seus associados nas iniciativas que vão desenvolvendo, nomeadamente nas redes inteligentes de electricidade, no biometano, no hidrogénio e no que se prende com a utilização futura das redes de gás natural.

Mas, é preciso dizer que não é por acaso que usamos a expressão “transição energética”: é porque é, efectivamente, uma transição. E, nesse sentido, haverá sempre quem diga que estamos a andar depressa demais e quem diga que estamos a ser lentos. Contudo, o que vemos é que se está a cumprir um caminho que visa a redução de emissões e a neutralidade carbónica do sector. Não é um caminho fácil, sabemos que há empresas em que é mais difícil ter soluções rápidas, mas temos a noção muito clara de que esta transformação só vai acontecer com o contributo de todos.

Não obstante a diversidade de empresas, diria que a descarbonização é transversal?

Sim, a descarbonização está na agenda de todas as empresas. Falar hoje de energia é falar de descarbonização, é falar desta transição fortíssima para as energias renováveis a que estamos a assistir em Portugal, é falar da electrificação, é falar de aproveitamento dos recursos. E, mesmo as empresas que, tradicionalmente, eram apresentadas como menos atentas são, actualmente, empresas de energia com um contributo muito positivo. Temos como associados as principais petrolíferas que têm na agenda iniciativas muito concretas para a descarbonização. Aliás, como disse, falar de energia, hoje, é falar de descarbonização.

É claro que à descarbonização associamos o "D" da descentralização, que se prende com a produção descentralizada, e o "D" da digitalização, pois temos a noção clara de que o sector vai introduzindo novas tecnologias, boa parte das quais para suportar a relação dos consumidores com a energia.

Vivemos num mundo global e as metas de descarbonização são também globais. Portugal está a acompanhar este movimento?

Em Portugal, está a acontecer. Contudo, não é um caminho fácil. Desde logo, porque as soluções que se apresentam como inovadoras têm de ser testadas, ser economicamente viáveis e aplicadas em escala. Não basta termos um exercício de engenharia, é preciso que se espalhe. E a inovação envolve avanços e recuos, pelo que, embora tenhamos de ter sempre o pé no acelerador, há um risco associado.

Não podemos esquecer que é preciso tempo até chegarmos a tecnologias maduras. Foi assim com a energia eólica e foi assim com a solar. E também não podemos esquecer os custos. Quer os primeiros parques eólicos, quer os primeiros solares foram muito caros do ponto de vista do megawatt instalado. É claro que hoje são mais acessíveis, o que permite a sua disseminação. E, nesse sentido, é preciso continuar a investir para se ter inovação a preços acessíveis.

Além disso, há o desafio geopolítico actual, que reforça o factor imprevisibilidade. A invasão da Ucrânia pela Rússia desencadeou uma alteração muito significativa no mercado, como sabemos. E há que pensar, ainda, que há países onde continua a ser feito investimento em tecnologias menos alinhadas com a descarbonização, mas que são necessárias face ao nível de crescimento que têm. Há todo um caminho de aprendizagem e de transformação.

O elo final da cadeia de valor da energia são os consumidores. Que papel podem assumir na descarbonização?

Na APE, gostamos muito de uma ideia que o World Energy Council lançou há uns anos e que é o “trilema energético”.

O primeiro eixo deste trilema é a segurança energética, um tema que, até recentemente, não era crítico, pois era garantido que o gás vinha da Rússia para a Europa, mas, a partir de 2022, a situação mudou. E reforçou a necessidade de cada país, Portugal incluído, assegurar que consegue fazer o abastecimento energético, quer recorrendo a recursos endógenos, quer a alguma importação, mas o mais limitada possível.

O segundo eixo é o da sustentabilidade ambiental. É preciso investir cada vez mais na comunicação e no conhecimento para construir soluções que ganhem consenso e se tornem perceptíveis pela população. Porque, quando chamamos as pessoas para a energia, sabemos que se interessam, veja-se a autoprodução e as comunidades de energia.

O terceiro eixo é o da equidade no acesso à energia. Todas as soluções têm de ser pensadas garantindo, por um lado, que todos temos acesso à energia e, por outro, que temos acesso em condições de custo aceitáveis. No caso português, o acesso está garantido, na medida em que temos redes de electricidade e de gás. O custo tem a ver com a inovação e com a maturidade das soluções. Se formos por caminhos que exijam investimentos extraordinários sabemos que, no fim, esse custo vai parar à conta do consumidor. E, neste aspecto, há uma responsabilidade de todo o sector, podendo ser necessário suportar algum custo de transição.

Temos tido o cuidado de não acompanhar soluções que, de algum modo, violem qualquer um destes eixos do trilema energético.

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Na sede da APE, em Alfragide, João Torres descreve os planos e expectativas para um dos sectores estruturantes do país.

No que toca aos combustíveis, estão na direcção certa?

Há um grande consenso, mas é claro que é muito mais difícil fazer a electrificação do transporte aéreo do que dos veículos ligeiros. O mesmo com o transporte pesado de mercadorias, em que é preciso avançar com cautela.

Essencialmente, para os transportes de longa distância, o caminho que tem de se fazer é o dos biocombustíveis e dos combustíveis sintéticos, muitos deles produzidos a partir de CO2, e esse caminho está a ser feito pelas grandes empresas antes designadas por oil & gas, mas que estão a criar produtos com um nível de carbono cada vez mais baixo.

Diria que a electrificação está encaminhada, mas não podemos esquecer que há outros contributos na área da mobilidade que podem ser decisivos. Há esta consciência de todas as empresas do sector. Porém, é mais fácil a uma empresa que só possui parques eólicos dizer que está descarbonizada, enquanto uma empresa com centrais a gás, por exemplo, enfrenta uma transformação do negócio muito mais desafiante. E há uma outra frente, que são aquelas indústrias em que a utilização de gás natural é decisiva e a electrificação difícil: também estão a transformar os seus processos, tentando torná-los mais eficientes e mudando para hidrogénio ou biocombustíveis, mas leva o seu tempo.

Mas as iniciativas estão identificadas e vão acontecendo histórias bastante positivas.

Que especificidades apresenta Portugal neste rumo?

Portugal tem algumas características que são decisivas, desde logo a dimensão. Estamos a falar de um país de uma dimensão média, o que permite que algumas soluções, depois de testadas, resultem - notemos o sucesso do eólico e do solar. E temos, tradicionalmente, um contributo muito relevante, inexistente na maior parte dos países europeus: a hidroelectricidade. O que dá algumas garantias, por ser um recurso endógeno, por ser renovável e pela flexibilidade inerente.

Flexibilidade aqui é uma palavra-chave: passámos de um tempo em que a produção se limitava a acompanhar o consumo, quer fosse nos combustíveis, quer fosse a nível doméstico, para um tempo em que pode ser desafiante o consumo ajustar-se à oferta. O que era tradicional - por exemplo, consumir pouco de dia porque a energia era mais cara - está a inverter-se: se tivermos solar em casa, é durante a noite que temos de poupar.

Sabemos que quando há deficit podemos recorrer a importações de energia, mas podemos reduzi-las de forma muito significativa, o que é relevante do ponto de vista da segurança e da soberania.


Este conteúdo está inserido no projecto "Descarbonização: que caminho para Portugal?", que inclui ainda case studies de empresas nacionais e uma conferência dedicada ao tema da descarbonização em Portugal.

Saiba mais aqui.

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