É possível viver sem plástico no dia-a-dia? Há quem tente fazê-lo

O plástico está por todo o lado e todos os anos são produzidos milhões de toneladas de plástico. É possível escapar? Há quem tente reutilizar e minimizar o desperdício, mas nem sempre é fácil.

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Parte do conjunto de materiais com que Ana Milhazes tenta contornar o plástico: kit de talheres, garrafa reutilizável, penso higiénico de tecido, frasco do lixo, saco do pão...) Nelson Garrido
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Sacos de plástico? Não, obrigada. Quem diz sacos de plástico diz qualquer tipo de plástico. É este o mote de Ana Milhazes, que fundou o movimento Zero Waste Portugal, e tenta ao máximo evitar o lixo e o desperdício no seu dia-a-dia. Mas nem sempre foi assim. Foi aos 33 anos que Ana Milhazes, após um burnout seguido de uma depressão, percebeu que tinha de quebrar o ciclo de consumo. Começou a pesquisar sugestões de organização e deparou-se com o estilo de vida minimalista — e a ideia de reduzir o consumo desenfreado e viver só com o essencial agradou-lhe.

Ana era uma consumista pura. “Ia várias vezes ao centro comercial. Chegava a conhecer as funcionárias das lojas e elas sabiam quem eu era, de tantas vezes que lá ia”, confessa. É por isto que se considera o exemplo perfeito de que estas mudanças são possíveis. “Se eu consegui, qualquer pessoa consegue”, conta ao PÚBLICO, entre risos. “Experimentem! Só sabem se experimentarem”, desafia Ana Milhazes.

Há uma década, Ana achava que, para se organizar melhor, deveria adquirir caixas e mais caixas que achava fundamentais para organizar o que tinha por casa. Até que uma frase a fez repensar: “Não faz sentido comprarmos coisas para organizarmos coisas que temos em casa que não usamos.” A agora influenciadora ficou incrédula. “Como é que nunca tinha pensado nisso?”, conta ao PÚBLICO, numa conversa informal no Parque da Cidade da Póvoa de Varzim, de onde é natural. O sítio foi escolhido propositadamente. Ar puro, ambiente limpo e calmo são a receita ideal para uma vida feliz. Pelo menos, para Ana.

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Ana Milhazes é a fundadora do Lixo Zero Portugal NELSON GARRIDO

Em 2012, decidiu que tinha de partilhar o que sabia com o mundo e assim surgiu o blog Ana Go Slowly, nome inspirado no monge budista Tchich Nhat Hanh“Smile, breathe and go slowly” (Sorria, respire e vá devagar). Mas, mesmo assim, faltava algo. Num dia, olhou para os seus caixotes do lixo e reflectiu: “Mas então? Eu sou tão preocupada com estas questões e ainda faço este lixo todo?...” E, tal como mostram os dados, não é a única: em Portugal, desperdiçam-se 1,8 milhões de toneladas de alimentos por ano; todo este desperdício alimentar a nível global traduz-se num aumento das emissões de gases com efeito de estufa. O mote estava dado. Mais uma vez, foi pesquisar e encontrou o blog de Bea Johnson, francesa que vive nos Estados Unidos há vários anos. Johnson, com dois filhos, um marido e um cão, produzia apenas um pequeno frasco de vidro de lixo por ano. Ana, socióloga de formação, percebeu qual era o seu próximo desafio.

Após algumas análises e introspecções, Ana percebeu que não precisava de tudo aquilo que utilizava diariamente. Em 2016, decidiu adoptar um estilo de vida de desperdício zero. Falou com os agricultores onde já comprava com regularidade o cabaz agrícola e questionou a hipótese de estes ficarem com os seus resíduos orgânicos. Contudo, ainda continuava com um problema em cima da mesa: o excesso de plástico. “Foi então que me lembrei: se eu comprar a granel, consigo reduzir esse uso do plástico”. De mochila às costas, pronta para mais um desafio, percorreu todas as mercearias locais perto da zona do Mercado do Bolhão e foi recolhendo esses dados para uma folha Excel. Para dar uso a toda essa informação, surgiu o grupo Lixo Zero Portugal. Ali, partilham-se dicas, tiram-se dúvidas e é fomentado o espírito de comunidade.

A poluição era uma das preocupações: o plástico tem-se tornado omnipresente nas nossas vidas. Há cada vez mais objectos feitos de plástico, cada vez mais alimentos embalados em plástico, e cada vez se vão descobrindo mais efeitos negativos destes plásticos na saúde humana (e do planeta). Todos os anos, milhões de toneladas de plástico são produzidos (e a produção tem-se multiplicado nas últimas décadas) e muitos deles têm uma vida curta e acabam por ir parar ao oceano, ameaçando os ecossistemas, a saúde dos animais e dos humanos.

“É incrível a quantidade de papel e plástico que se gasta hoje em dia para tudo. Tudo vem embrulhado, às vezes até em mais do que uma embalagem”, conta Ana, com alguma indignação. Desde que decidiu adoptar esta postura de reduzir ao máximo o desperdício, foi fazendo algumas alterações. Começou aos poucos, devagarinho, até se aperceber que funcionava quase como terapia. Aliado às compras a granel, a influenciadora bebe água da torneira, filtrando-a com carvão vegetal; segue uma alimentação 100% vegetal, poupando diversos recursos (sobretudo a água usada para produzir carne); utiliza sempre toalha e guardanapos em tecido, copos e louça de vidro e cerâmica; para reduzir o uso do papel, imprimiu o aviso “Publicidade não” e aderiu às facturas electrónicas. Tudo coisas simples e baratas. “As pessoas normalmente tendem a associar este estilo de vida a algo dispendioso, mas é completamente o oposto", aponta.

“Comprar a granel é bom e faz bem”

Além dos danos para o ambiente, a redução do plástico vem aliada a outros benefícios. “É um estilo de vida mais natural, mais saudável. Se pensarmos bem, a comida que está embalada é comida transformada. Quando a deixamos de comer, estamos a comer alimentos de verdade”, acredita Ana. Existem muitos mitos sobre as compras a granel. Desde não ser prático a não existir todo o tipo de produtos ou, o mais comum e ouvido várias vezes por Catarina Leitão, proprietária da loja Zero Plástico, no Porto, que “é demasiado caro”.

Catarina põe logo os pontos nos ii. “Primeiro, nós aceitamos todo o tipo de embalagens, não apenas as de vidro.” Quanto ao custo, também há resposta e, segundo a engenheira agrícola, bem fácil de dar – “não estamos a comparar coisas exactamente iguais”.

“A grande diferença é que as pessoas aqui levam a quantidade que querem, não a que alguém achou que elas tinham de levar”, explica a proprietária da loja que fica escondida no fundo da Rua do Cardeal Dom Américo. Com rotinas tão corridas como aquelas a que os dias de hoje obrigam, a proprietária explica que o processo da compra a granel funciona quase como “terapia” para ajudar a “desacelerar”. “O facto de o cliente vir a uma pequena loja, contribui para um atendimento mais personalizado. Dá para falar do dia-a-dia, perguntar pela família… até o próprio processo de fazer as compras tem o seu tempo natural. O cliente tem de encher o recipiente com o detergente, esperar que ele verta… contribui para desacelerar”, conta, enquanto vai mostrando alguns dos produtos.

Rita e Catarina Leitão são as proprietárias da loja Zero Plástico, no Porto NELSON GARRIDO
O foco da loja é a venda a granel NELSON GARRIDO
Apresenta uma vasta variedade de produtos, desde alimentares até ao vestuário NELSON GARRIDO
Atualmente, o ponto forte da loja passa pela secção de cosmética,Atualmente, o ponto forte da loja passa pela secção de cosmética NELSON GARRIDO,NELSON GARRIDO
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Rita e Catarina Leitão são as proprietárias da loja Zero Plástico, no Porto NELSON GARRIDO

A loja surge da experiência das proprietárias, Rita e Catarina Leitão, que, também marcadas por uma infância ligada à vida no campo, começaram a consumir alguns dos produtos que agora vendem. No site, deixam também informações que sentem que ainda estão em falta. Trata-se de uma questão de interiorização. Porque, segundo explica, este estilo de vida “só tem benefícios”.

A brincar é que a gente se entende

Os tempos da pandemia foram maus para muitos, mas a verdade é que também trouxeram novos horizontes a outros. É o caso de Augusto Lima e Carolina Smraul. São casados e têm uma filha ainda pequena. Conheceram o mundo da sustentabilidade graças a um projecto com um jovem biólogo alemão – The Trash Traveler. “A ideia dele era fazer a costa de Portugal toda a pé, recolhendo lixo e alertando para o problema do plástico descartável”, explica ao PÚBLICO Carolina, enquanto Augusto se concentra em mais um jogo de tabuleiro.

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Augusto Lima e Carolina Smraul são casados e dedicam-se à elaboração de documentários ambientais NELSON GARRIDO

Os jogos de tabuleiro vieram como um hobbie, mas rapidamente se tornaram uma paixão. Carolina já era aficionada desde pequena e convenceu o marido. Os dois perceberam que era um bom mote para explicar aos mais novos como funciona o mundo da sustentabilidade. Após contactos com várias marcas, surgiu a oportunidade de eles terem o seu próprio jogo, inspirado no The Trash Traveler, que deverá ser lançado no final do ano. Apesar de não poderem adiantar muito, para não estragar o “efeito-surpresa”, explicam que passará, essencialmente, por “uma aventura cooperativa para salvar o oceano”.

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Ambos são apaixonados por jogos de tabuleiro NELSON GARRIDO

Quando a filha nasceu, a rotina do casal teve de ser adaptada. As fraldas de pano chegaram a ser equacionadas, mas rapidamente saíram do cenário porque a rotina de trabalho dos dois o tornava difícil. Mas muitas outras coisas foram-se mantendo alinhadas. “Poucas foram as coisas que comprámos para ela [a filha]. Recorremos a amigos, familiares, grupos do WhatsApp que vendem coisas usadas”, conta Augusto, explicando que a grande parte dos objectos até chega a estar praticamente nova, devido à pouca utilização. Durante a conversa com o PÚBLICO na sua casa, mostraram algumas das mudanças que têm feito para diminuir o seu impacto no que diz respeito ao desperdício. Carolina vai explicando, orgulhosa mas ciente de que o caminho ainda é longo.

“Utilizamos garrafões na banheira para evitar o desperdício de água, utilizando essa mesma água depois para regar as plantas. Também reciclamos as tampas das frutas que a pequenina come para fazermos jogos didácticos com ela. Nunca deitamos comida fora, deixamos sempre conservada para o dia seguinte… no fundo, evitamos ao máximo o desperdício no geral”.

Texto editado por Claudia Carvalho Silva