É difícil explicar como é que a praxe sobrevive

A praxe tem um impacto nefasto no ambiente académico e na formação dos estudantes. Ano após ano, a sociedade normaliza esta cadeia de violência. Por quanto mais tempo se irá permitir este absurdo?

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No início do ano académico, as faculdades enchem-se de preto. Mesmo em Lisboa, é impossível ignorar os grupos de estudantes universitários a submeterem-se a actividades humilhantes que chegam a causar constrangimento a quem passa por perto. Um dia destes, cruzei-me com uma cena dessas enquanto passeava acompanhada por amigos estrangeiros. Apanhados de surpresa, perguntaram-me o que é que se estava ali a passar. Disse-lhes que era a praxe.

Expliquei-lhes, então, que a praxe é um ritual de integração das faculdades portuguesas. Assim que o disse, o grupo de caloiros atrás de nós ajoelhou-se para que os trajados lhes despejassem cerveja no cabelo. Apercebi-me que os meus amigos, estupefactos, iam bombardear-me com perguntas para as quais não tinha resposta. “Mas não há clubes de debate? Núcleos de desporto? Como é que os universitários se submetem a rituais tão escabrosos para se integrarem?” Disse-lhes que era a tradição, que só ia quem queria e que, supostamente, o trauma fortalecia as amizades.

Contudo, o meu papel de advogada do diabo foi rapidamente desmascarado. Eles perceberam claramente que estes argumentos não passam de tentativas de justificar o injustificável.

É difícil explicar como é que a praxe sobrevive. Mais do que isso, é intrigante perceber como é perpetuada por uma geração de jovens que se orgulha de romper com as tradições retrógradas, mas que escolhe manter esta cadeia de violência e humilhação tão desajustada ao século XXI. Estes estudantes escolhem acreditar que a reforma da praxe faz dela aceitável, quando a única mudança relevante foi tornar-se voluntária, mantendo sempre a sua essência: a pressão para fazer parte, a violência para com quem aceita, a exclusão de quem se recusa a ceder.

Mais que isso, não vêem que o preferível talvez fosse voltar à origem da praxe, onde os estudantes se organizavam para explicar o funcionamento da faculdade aos novos alunos, sem nunca os submeter a qualquer humilhação pública ou a relações tóxicas de submissão.

Este sistema deixa qualquer um perplexo. O que mais intrigou os meus amigos foi a atitude de muitas faculdades relativamente ao tema. Quando lhes contei que muitos professores não marcam faltas em dia de praxe, que é excepção alguém do meio universitário se opor publicamente a estas práticas e, mais do que isso, é escassa a publicitação de outros meios de integração que a faculdade oferece, eles desistiram de tentar entender. A verdade é que, por vezes, parece que as universidades não se apercebem do espaço que a praxe ocupa.

Esta prática extremamente antiuniversitária está na raiz do insucesso relativo de todos os outros eventos e clubes que a faculdade organiza. A energia dos estudantes que se deixam entrar na rotina da humilhação podia ser canalizada para outros grupos, como clubes de debate, desporto ou artes, que garantem de facto a integração e se alinham com o espírito académico de partilha e reflexão, valores que são infinitamente mais tradicionais e produtivos nas universidades portuguesas do que a humilhação de caloiros por estudantes trajados.

É difícil compreender a passividade de muitas universidades relativamente ao fenómeno. A praxe prejudica a formação académica dos alunos, que entre faltar às aulas para levar com berros, e usar o seu tempo livre para berrar com os outros, nem se apercebem da imensidade de recursos e eventos que as faculdades proporcionam.

Tenho muitos colegas e amigos que aceitaram juntar-se à praxe. Não creio que nenhum deles o tenha feito por genuíno gosto, nunca apreciaram receber ordens aleatórias, fazer flexões ou cantar músicas brejeiras (excepto talvez nos Santos Populares).

Todos os meus amigos, quando olham para trás, percebem que a praxe é algo a que não se deviam ter submetido, que vai contra os seus valores e o verdadeiro espírito académico. Penso que, no primeiro ano da faculdade, sentiram culpa e renitência no momento de aderir, mas cederam ao instinto de seguir a maioria e à vontade de fazer parte de um grupo. Foi por isso que perpetuaram o ciclo. E, como eles, muitos outros o farão.

Pergunto-me por quanto mais tempo a sociedade vai escolher banalizar a violência a que os estudantes são sujeitos nas faculdades portuguesas. Questiono-me quantas mais gerações se submeterão ao ciclo do bullying antes que, finalmente, se perceba que não há espaço para a praxe na universidade, que não há espaço para a praxe em Portugal.

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