Morreu Armando Freitas Filho, uma vida de coração aberto à poesia

O poeta carioca era um leitor compulsivo e um escultor das palavras. Tinha 84 anos.

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O poeta Armando Freitas Filho numa sessão na Festa Literária Internacional de Paraty Tomaz Silva/agência brasil/ wikicommons images
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A morte de Armando Freitas Filho, aos 84 anos, no Rio de Janeiro, foi o último passo de uma trajectória peculiar. Ele ocupou um papel agregador e ímpar durante os mais de 60 anos em que exerceu o seu ofício — ou dever — de poeta. A notícia da sua morte nesta quinta-feira foi confirmada pela sua editora, Companhia das Letras.

Freitas Filho teve um percurso paralelo aos autores seus contemporâneos da chamada poesia marginal, sem de facto integrar o grupo. O poeta era identificado com nomes da sua geração como Francisco Alvim ou o cometa — brilhante e passageiro — Ana Cristina Cesar, zelando pela obra da amiga após o seu suicídio.

Em 2013, quando Freitas Filho completou cinco décadas de poesia, celebradas com Dever, a ensaísta e crítica Heloísa Teixeira, que havia editado uma antologia de “poesia marginal", explicou as razões pelas quais optou por deixar de fora o poeta: "Eu fiz uma antologia de poesia marginal em 1976 e ele não está, porque a palavra para ele é uma coisa tão importante, é um artesanato que ele tem tão sofisticado." A poesia marginal, "antiliterária" segundo ela, era o contrário do trabalho de "esculpir a palavra, esculpir a sintaxe", desempenhado pelo amigo.

Esse rigor é a marca mais evidente de uma obra que cobre da meditação sobre a cidade ao erotismo e que apenas recentemente deixou o verso — publicou Trio pela 7Letras em 2018 e Só Prosa em 2022, pela Companhia das Letras, a sua editora desde Lar, de 2009.

Foram mais de 40 títulos desde Palavra, de 1963, até Respiro, que entrou no prelo no dia de sua morte, nesta quinta-feira.

Autodefinido ansioso e metódico, colocava o corpo a serviço da mente inquieta. Percorria diariamente muitos quilómetros pela sua Urca, até a pandemia lhe vir ceifar esse hábito. Não raro, era na rua que lhe ocorria anotar os versos que pareciam brotar do passo ritmado.

Isso não se confundia com um culto da inspiração. "Comigo não tem essa coisa de esperar a poesia chegar: eu vou de encontro a ela. Se ela chegar, estou pronto para escrevinhá-la. Se ela não chegar, eu estou sempre em contacto com ela, através da leitura, porque fui e sou um leitor compulsivo."

Reescrevia muito, em cadernos primeiro, depois em papéis soltos, passando a limpo na máquina de escrever e no computador, em busca da forma contida e continente que viesse a expressar o que precisava dizer.

Pois precisava. Era gago, mas o titubeio verbal só o assolava nos momentos de exasperação. No papel, nada transparecia de hesitante.

Filiava a sua poesia à descoberta, na juventude, de Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, aos quais chamava "três mosqueteiros", sem deixar de lado Ferreira Gullar, o "D’Artagnan". Serviu de elo entre o modernismo e os novos e novíssimos autores hoje ainda em actividade. Estes encontraram em Armando um mentor.

Armando, sim, pois era como todos o chamavam. Quando a porta de sua casa se abria para um jovem poeta ou estudante, era para dar passo a um mundo de generosidade e atenção.

Gozaram dessa amizade profícua nomes tão diversos como Sérgio Alcides, Maria Rita Kehl, Laura Liuzzi e Alice Sant’Anna — a estas duas, Freitas Filho chamava "meus brincos de pérola". Alice foi, ainda, a sua última editora.

Levada primeiro por uma tarefa deste jornal, também entra para a lista a autora deste texto, poeta ocasional que se une aos que ele deixa — sua querida Cristina Barros Barreto, os filhos, Maria e Carlos, os netos, Max e Mia, e todos os que tiveram a sorte de cruzar o portão azul da Urca, detrás do qual não havia o "cão bravo" anunciado na placa, mas um coração aberto para a poesia.

Exclusivo PÚBLICO/Folha de S. Paulo

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