Um Pouco Mais de Azul: o podcast de Fernando Alves, Rita Taborda Duarte e Francisco Louçã na rede PÚBLICO

O podcast Um Pouco Mais de Azul, de Fernando Alves, Francisco Louçã e Rita Taborda Duarte, junta-se à rede de podcasts independentes do PÚBLICO. Ouça o primeiro episódio da temporada.

Nesta primeira vénia aos que, doravante, nos acolham no condomínio aberto do PÚBLICO, prometemos xurdir.

Assinamos este cartão de apresentação e assim declaramos o óbvio: a cada quinzena tentaremos alcançar um pouco mais de azul.

O que nos ocupa: instantes de perplexidade quotidiana, livros e filmes, o que vai acontecendo no mundo e na esquina mais próxima, o que vier à mão.

Nos anteriores episódios deste podcast fomos adoptando uma palavra como espécie de bordão, não no sentido de estribilho repetitivo, mas no de cajado para o caminho.

Escolhemos para esta semana a palavra Xurdir, esperando que ela seja inspiradora. E que o caminho seja longo.


O podcast Um Pouco Mais de Azul está disponível às quintas-feiras, quinzenalmente, em todas as aplicações para escuta de podcasts — como a Apple Podcasts ou o Spotify —​ e na área de podcasts do site do PÚBLICO.

O videocast pode ser visto aqui.

Em baixo pode ler excertos do episódio desta semana.


Não deixemos de xurdir

Fernando Alves

Regressada de uns dias em Miranda do Douro, a poeta Rita Taborda Duarte quis saber de Francisco Louçã e deste vosso conviva se estaríamos prontos a xurdir, com razoável desenvoltura, em prol do podcast que, a partir de hoje, é acolhido sob o chapéu de um jornal respeitado. Obviamente, não nos demos por fracos.

Pela minha parte, aplaudo vivamente. Escutei pela primeira vez a palavra na boca de Paulo Freixinho, cruciverbalista de mérito, quando o convidei há muitos anos para uma conversa na rádio. Xurdir é a palavra preferida de Freixinho que por ela espadeirou na eleição da Palavra do Ano, há uma década precisa.

A palavra ganhou raízes na Galiza e nas Terras de Miranda e, não obstante colher do vento e do uso uma relativa polissemia, incita-nos, em primeira instância, a fazermos pela vida, a darmos o litro.

Foi isto que Rita nos trouxe de Miranda e não uma posta, um adufe, um disco dos Galandum Galundaina ou uma capa de honras. Rita trouxe-nos um repto, desafio com cinco letras.

Aceite o repto, dei comigo a tentar montar um exercício de palavras cruzadas.

Num primeiro momento, tratei de lançar, em linhas horizontais, uma palavra mais extensa na qual entroncassem outras verticalmente.

Aí vai: apelido de titular de altíssimo ministério, necessitado de ajuda urgente dos assessores quanto ao injustificado início de frases pelo infinitivo impessoal (ex. “dizer ainda que”) e quanto à utilização correcta de verbos copulativos. Dez letras.

Aí vai outra: cavalheiro ministerial que, estando apeado e sem rocinante, se imaginou alçado a cavaleiro da triste figura, vislumbrando os moinhos do Campo de Criptana na praça-forte de Olivença. Quatro letras.

O noticiário avulso oferece pano para mangas, quando se trate de cruzar a fala e a proposta mais rasteiras, ao nível dos calcanhares, do bate-papo e da cavaqueira política com o desiderato nobre de discursos que aspirem a alguma elevação, como o recente de Guterres, alertando-nos, no Dia Internacional da Paz, para o “catálogo de miséria humana” com que, nestes dias, o mundo se confronta.

Usando esta matéria-prima, é difícil evitarmos que tais palavras cruzadas se transformem, entrelaçando-se, em encruzilhadas. Temendo que as inesperadas, obscuras, tumultuosas, novas palavras que colhemos do ar, da leitura, da teia audiovisual, das praças raianas, nos armadilhem, deixo a Freixinho o que é de Freixinho.

E proponho que regressemos ao início. Ao formidável reencontro com cada palavra que andava de nós perdida. À luminosa descoberta de outras nunca suspeitadas. Demoremo-nos em cada nova palavra, provemo-la, por mais que a sua carapaça dificulte a decifração. Por vezes, muitas vezes, não é tarefa fácil. Por isso, também nesse combate corpo a corpo com a palavra, na sua dimensão estética e ética, é preciso xurdir.


Xurdir

Rita Taborda Duarte

Xurdir é o mote de hoje, para seguir um pouco mais além no azul. Uma palavra é como a água: raramente se tem quieta. Em havendo caminho por onde se infiltre, é por aí que corre; galga tempos, fronteiras, transpõe línguas e acomoda-se às necessidades de quem a usa, de quem a diz. Xurdir, palavra ainda tão usada em Trás-os-Montes – e tão rara, já, no resto do país –, em língua mirandesa emancipou-se um pouco: significa, mais que trabalhar arduamente e andar nas lidas da vida, também bisbilhotar, meter a foice em seara alheia. E muito teve de xurdir, aliás, o mirandês, para se manter à tona, autónomo, insinuando-se, para romper à superfície. Há palavras que trazem embuçados tantos sentidos a morar lá dentro… Na verdade, naturalmente, cada palavra é migrante e em mutação: há sempre algum sítio em que é sentida com descaso, arredada do taramelar comum. Como as pessoas, afinal, quando tratadas com a cegueira de quem confunde o horizonte com a fronteira. Gostava de lembrar um livro, com a memória ainda fresca de uma notícia dos últimos dias: a Alemanha, ao arrepio do acordo de Schengen, está a restabelecer o controlo das suas fronteiras terrestres. O livro não é de agora, mas felizmente a literatura não se deixa resgatar pela efervescência do tempo. Da escritora alemã Jenny Erpenbeck*, lembro Eu Vou Tu Vais Ele Vai, que conta como Richard, professor universitário jubilado, em Berlim, se vê confrontado com a presença de uma comunidade de africanos refugiados, fazendo greve da fome, erguendo tendas na Praça Alexander, em Berlim. Exigem, em desespero, uma saída para a sua situação. Richard passa por esse cenário, e vê-o, sem o ver, distraidamente desatento. Só quando chega a casa, se confronta realmente com notícia integrada nos noticiários, obrigando-se a uma reflexão sobre o caso. E estranha ter passado sem, no entanto, nada ter visto. Richard, reformado, sem família, tem tempo, portanto, para estar no mundo e, consequentemente, para o pensar. E este é também um livro sobre o tempo, o nosso, e aquele que podemos dedicar a conhecer o outro. Richard chegara à Alemanha, ainda criança, em plena guerra, vindo da Silésia e vivera em Berlim Leste até à queda do muro. Tivera, portanto, de se adaptar, ele mesmo, estrangeiro, em sua terra, ao tumulto da vida capitalista. Este será o ângulo social, pessoal – também – com que procurará compreender a situação dos refugiados, projecto a que se irá dedicar.

Dois subtextos simbólicos sustentam o livro: junto à casa de Richard, há um lago onde se afogou um homem, turista, que não chegou a ser encontrado ou resgatado, o que provoca uma incomodidade que vai assombrando o ambiente como um mal-estar perene. O outro alicerce simbólico do livro relaciona-se com a própria nomeação – a identidade: a incapacidade de ver o outro, sequer como um tu, ou um ele, mas como um nós: precisamente o pronome a que o título do livro – eu vou, tu vais, ele vai – se furta. Estes homens refugiados começam por se recusar a dizer sequer o seu nome. Só aos poucos, com a aproximação de Richard, vamos sabendo como cada qual se chama e a sua história: Ali, Karon, Osarobo, Kalhil, Rashid, Zair, Abdusalam, Maohmed.

É, então, do silêncio e da voz, da ausência e da presença, da identidade e da sombra que este livro fala, fazendo ressoar, a dado momento, o eco de um poema de Bertolt Brecht, de que Richard se lembra, en passant, ao dar conta dos comentários boçais nas redes sociais sobre o caso. É um poema sobre um cavalo prostrado numa valeta, a quem, ainda vivo e arquejante, as pessoas esfaimadas arrancam a carne, para se alimentarem. O cavalo, entregue às suas mãos assassinas, lamenta-lhes a desumanidade. Deixo-vos o final desse poema:

(...)

Pessoas famintas; um pedaço de carne queriam obter

Com facas arrancaram-me a carne do osso

E eu que ainda vivia, não havia terminado de morrer!

(...)

Então me perguntei:

Que frieza

Deve ter se apossado dessa gente!

Quem os trata tão malevolente

Que cada um se torne assim desprezível?

Ajudem-nos, portanto!

E o façam com presteza!

Senão lhes acontecerá algo que os senhores não julgam possível! (trad. Paulo Cezar de Souza)

Devíamos, pois, dar ouvidos ao sabedor cavalo de Brecht e xurdir, todos nós, por uma centelha de humanidade no mundo. É que – como bem compreende Richard, no seu pensamento final, última frase do livro – «aquilo que aguentamos é apenas a superfície do que não aguentamos». Como um lago. Como o mar.

* Jenny Erpenbeck

Eu vou, tu vais, ele vai (trad. Ana Falcão Bastos)

Relógio D’Água

2018


OE no buraco da agulha

Francisco Louçã

A farândola do domingo passado resumiu-se a isto: um comunicado do Governo a apontar culpas ao PS pelo atraso de reuniões, uma réplica imediata do PS a dizer que era mentira e provocação e uma reunião marcada num ápice para sexta-feira. Ou seja, ou a provocação surtiu efeito e começa uma negociação empenhada, ou cada um dos partidos quer unicamente apontar culpas ao outro – e só a segunda hipótese tem sentido. Tanto é assim que, na antecipação desse encontro, Montenegro foi comiciar sobre a “infantilidade” de Pedro Nuno Santos, pensando pela certa que um insulto soez o faz descarrilar, o que mostra em qualquer caso que temos uma farsa, apesar de mal embrulhada.

Montenegro quer eleições. Já quer uma crise desde o momento em que se contaram os votos e, tendo ficado com o mesmo número de deputados que o PS e com um Chega inflacionado, desde essa noite só tem um projecto: imitar António Costa, provocar uma crise política e dramatizar as urnas. A partir dessa escolha, basta seguir milimetricamente o truque Costa e o Orçamento é o instrumento ideal, como foi, aliás, o dele. Assim dirá o Governo: o orçamento resolve o fundamental, tem dinheiro para polícias, professores, profissionais de educação, para a floresta e para reduzir impostos, para a guerra e para a cultura; não se pode admitir que alguém arraste o país para o abismo-sem-orçamento; os ministros fizeram o que podiam, cederam, conversaram, estenderam as mãos aos céus; e, como a oposição só quer a desgraça da Pátria, é com humildade mas imenso Sentido de Estado que vos pedimos uma grande maioria. Tudo Costa em 2022. Montenegro está a fazer ao PS o que o PS fez à esquerda há dois anos.

O primeiro-ministro tem ainda duas vantagens: sabe que o PS sabe que isto já resultou uma vez, afinal foi no Largo do Rato que foi inventado o estratagema; e tem o Presidente nas mãos, dado que ele criou jurisprudência e não pode recuar agora, se bem que seja o único dentre estes atores a não querer eleições, é mancha de mais no seu mandato e arrisca-se a que ninguém se lembre dele a não ser pela catadupa de crises que entregou aos primeiros-ministros. E tem mais um argumento, que Costa também usou, à época foi com a covid e a Ucrânia: o mundo não está para brincadeiras, é o caos por todo o lado, deixem-nos trabalhar e seremos um cantinho de tranquilidade.

Todas as peripécias da farsa orçamental apontam nesta direcção. Primeiro, não se conhece o orçamento e já vai esta dramatização, que quer forçar os partidos a proclamar a aprovação de algo que ignoram, como se se tivessem que dar por certo que é um elixir mágico que salvará o país dos seus males. Segundo, as duas medidas que o governo aceitou revelar, baixar os impostos para os jovens da classe média-alta e deitar dinheiro nas grandes empresas, têm objectivos tão evidentes na perseguição aos votantes IL e Chega (e PS) que nem houve disfarce. Terceiro, o governo sabe que controla em absoluto os timings da comunicação sobre a questão orçamental, sobre o seu conteúdo e sobre os seus putativos beneficiários. Falará com carinho a cada eleitor do Chega que quer muros contra os imigrantes e o Governo terá muros a oferecer; falará com enlevo aos jovens liberais que não querem impostos e garantirá que não os pagarão; prometerá cuidados nos serviços que a anterior maioria absoluta deixou de pantanas. Anunciará tudo para todos.

É evidente, apesar deste controlo de uma operação bem testada, que Montenegro sabe que não terá maioria absoluta e alguns conselheiros dir-lhe-ão que a coisa se faria melhor no final de 2025, com a vantagem de enevoar as eleições presidenciais e rasteirar o almirante. Mas será que ele quer esperar, para amarrar o PS a um mau acordo para um orçamento que sempre iluminará o Governo? Lá onde Montenegro está não há prudência, há aventura, todos se acham um Bulldozer, mais vale uma crise na mão do que duas a voar.

A única coisa que os conselheiros e os aventureiros não lhe dirão é que o país está farto da farsa, da ambição do poder incontestado, da sujeição da democracia à força de interesses. E que lhe importa?

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