Dívidas, lacunas e energia: Portugal e Espanha têm novo acordo para águas partilhadas

Nesta sexta-feira, as ministras de Portugal e Espanha revelam em conferência de imprensa, em Madrid, os termos do acordo negociado nos últimos meses sobre os rios ibéricos.

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Reunião bilateral com Teresa Ribera (à esquerda) e Maria da Graça Carvalho, em Julho, no Ministério do Ambiente RODRIGO ANTUNES/LUSA
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Nesta quinta-feira arrancou a celebração dos 25 anos da Convenção de Albufeira, em Aranjuez, uma cerimónia comemorativa assinalada num momento marcado por fortes expectativas sobre os termos do novo acordo sobre as águas partilhadas por Portugal e Espanha, que deverá ser tornado público esta sexta-feira, em Madrid.

Em cima da mesa há várias questões em aberto, nomeadamente de que forma Espanha vai pagar a dívida de 40 milhões de euros da água captada na albufeira de Alqueva ao longo dos últimos 20 anos e os 2 milhões de euros por ano pelo consumo de água da albufeira de Alqueva. Estas verbas foram acordadas na reunião realizada a 3 de Julho em Lisboa, entre a ministra do Ambiente e Energia (MAE) de Portugal, Maria da Graça Carvalho, e a ministra da Transição Ecológica e do Desafio Demográfico de Espanha, Teresa Ribera, mas as dúvidas subsistem.

Um alegado perdão da dívida acumulada no passado chegou a ser questionado. Em Julho deste ano, no início das negociações entre Maria Graça de Carvalho e Teresa Ribera, o PÚBLICO escrevia que o pagamento dos 40 milhões de euros à EDIA pela água de Alqueva (um valor que, até à data, nunca havia sido contabilizado formalmente) poderia não vir a concretizar-se efectivamente.

Porém, este foi e continua a ser um dos elementos da equação na negociação entre os dois países, ficando por esclarecer de que forma e quando as verbas acordadas serão pagas. Questionado pelo PÚBLICO, o gabinete da ministra portuguesa limitou-se a confirmar que os termos do acordo só serão divulgados nesta sexta-feira.

O PÚBLICO solicitou esclarecimentos ao presidente da EDIA, José Pedro Salema, sobre os pagamentos a efectuar por Espanha pela água consumida a partir de Alqueva, mas este responsável declinou fazer qualquer comentário sobre uma matéria que já foi discutida e acordada em Julho. Também o Ministério da Transição Ecológica não respondeu, em tempo útil, à mesma pergunta colocada pelo PÚBLICO.

Do encontro entre as duas ministras resultou também um princípio de acordo sobre tomada de água no Pomarão e gestão de caudais ecológicos no rio Tejo e ficou estabelecida uma “linha comum de acção” sobre o sector da energia na Península Ibérica. A biodiversidade foi outro dos assuntos analisados na terceira reunião das duas governantes, desde que o novo Governo português tomou posse. Todos estes temas terão sido debatidos na reunião técnica entre as duas governantes que decorreu esta quinta-feira, em Madrid.

Os problemas de uma convenção adulta

Portugal e Espanha comemoram em Madrid os 25 anos da Convenção de Albufeira. Porém, ao longo de 25 anos a Comissão para a Aplicação e o Desenvolvimento da Convenção está marcada por acentuadas fragilidades e opacidade no seu funcionamento.

A 17 de Janeiro de 2000 entrou em vigor a Comissão para a Aplicação e o Desenvolvimento da Convenção (CADC) acordada um ano antes por Portugal e Espanha sobre a Cooperação para a Protecção e o Aproveitamento Sustentável das Águas das Bacias Hidrográficas Luso-Espanholas.

A comemoração dos 25 anos da CADC tem sido assumida por vários observadores como um exemplo positivo que tem testado, em cada ano que passa, a relação entre os dois países ibéricos na gestão dos recursos hídricos, num contexto em que escassez se acentua. Ainda que pontualmente, ao longo destes anos, tenham existido motivos para temer uma "guerra pela água" na península.

Ainda assim, se comparada com outros exemplos de países vizinhos (EUA, México, Canadá ou Egipto, Etiópia), onde a conflitualidade e a prepotência são evidentes, a relação entre Portugal e Espanha para a gestão dos recursos hídricos tem sido apresentada com um exemplo, mesmo ao nível mundial.

As lacunas

Contudo, os incidentes entre os dois países ibéricos têm-se acentuado desde os anos 90 do século passado. Amparo Sereno, docente do Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Lisboa, que tem aprofundado as pesquisas sobre os vários acordos que Portugal e Espanha assinaram sobre os rios internacionais, descreveu episódios que revelam lacunas na gestão dos recursos hídricos dos rios ibéricos no documento que elaborou recentemente, Convenção de Albufeira vinte e cinco anos depois: a diplomacia hispano-portuguesa da água e a governação multinível face às alterações climáticas.

A investigadora revela que o estatuto da CADC “nem sequer foi aprovado”, pelo que “não existe um critério objectivo” para a nomeação dos seus membros, configurando um órgão intergovernamental, “centralizado e altamente dependente do Governo da época”. A sua “fragilidade institucional”, prossegue Amparo Sereno, “é especialmente evidente em momentos de crise”, quando se observa incumprimento do regime de caudais. Ou seja: “A CADC não defende a forma como a convenção é aplicada”, pois, “os problemas são resolvidos com sigilo e centralismo nos Ministérios do Ambiente” afirma a investigadora.

Este modus operandi “distorce o disposto na convenção”, uma vez que estabelece que, em caso de diminuição acentuada do caudal represado nas suas barragens, a Espanha pode declarar o estado de emergência, o que a isenta da obrigação de cumprir o regime de caudais. “No entanto, Espanha insiste em não cumprir sem declarar o estado de emergência, e Portugal tolera-o...”

Os incumprimentos

Nos casos mais graves de incumprimento que têm ocorrido, tanto no Tejo como no Guadiana, Espanha poderia ter declarado o estado de emergência devido a uma das secas cada vez mais frequentes, “mas não o fez”. Também no rio Douro se registaram incumprimentos, frisa a investigadora.

Em 2022, devido à expansão da irrigação na parte espanhola da bacia do Douro, Portugal assistiu às reivindicações de agricultores castelhano-leoneses que pediram ao Governo espanhol para reter água nas albufeiras do seu país, impedindo o escoamento do fluxo em direcção à fronteira, o que, na prática, significou uma violação da convenção.

Espanha também não cumpriu com os caudais mínimos no Douro, no Tejo ou no Guadiana durante o ano hidrológico anterior (entre 1 de Outubro de 2016 e 30 de Setembro de 2017). E na zona do Pomarão, o país vizinho “mantém uma captação média anual de 35 hm3 desde a captação do Boca Chanza e que pode atingir os 80 hm3 em caso de seca”, assinala Amparo Sereno.

Também Portugal não sai imune nos incumprimentos. Unilateralmente, estabeleceu a descarga de 2 m3/segundo para o Guadiana internacional, a partir do açude de Pedrógão. Mas dado que a posição espanhola é sempre a montante – com excepção do Guadiana, no Pomarão –, “a maior parte dos incumprimentos são espanhóis”, conclui Amparo Sereno.

São apenas alguns dos muitos incidentes que se têm registado na gestão da água que é cada vez mais escassa. Nesta sexta-feira, um novo passo será dado na gestão partilhada dos rios ibéricos. Todos esperam que este novo acordo represente um progresso.