Cientistas em Portugal querem usar resíduos de cannabis para fazer pesticidas ecológicos

Projecto para extrair da cannabis medicinal compostos capazes de combater doenças da oliveira, evitando assim o uso de pesticidas tradicionais, recebe 150 mil euros de financiamento.

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Resíduos da produção de cannabis para fins medicinais vão ser usados para a extracção de compostos que podem combater doenças do olival Sérgio Azenha
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A ideia de transformar resíduos da produção de cannabis medicinal em pesticidas biológicos, sustentáveis e capazes de controlar doenças das oliveiras é uma das vencedoras da 6.ª edição do Programa Promove da Fundação “La Caixa”. O projecto, liderado pelo laboratório InnovPlantProtect e desenvolvido em parceria com a Universidade Nova de Lisboa, vai receber 150 mil euros de financiamento.

O objectivo dos cientistas é aproveitar o que sobra da produção de cannabis para fins terapêuticos – resíduos que, de outro modo, seriam encaminhados para compostagem ou incineração – para a extracção de compostos que possam ser usados em futuros pesticidas biológicos.

Esta extracção é feita com recurso aos chamados solventes verdes. Ao contrário dos solventes orgânicos tradicionais, que costumam ser tóxicos (logo nocivos à saúde humana e ambiental), os solventes verdes são frequentemente feitos a partir de recursos renováveis e biodegradáveis e, portanto, considerados mais sustentáveis.

“É como quando fazemos um chá”, compara Ana Rita Duarte, investigadora do Laboratório Associado para a Química Verde da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa. Para extrair do saquinho de ervas as propriedades que desejamos, usamos a água quente como um solvente verde. O problema é que, em processos industriais, a água não tem um bom desempenho como solvente. E daí serem usados, neste e noutros projectos de química verde, soluções líquidas mais sofisticadas: os chamados solventes eutécticos profundos.

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Ana Rita Duarte, investigadora da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa NOVA FCT

“Estes solventes verdes que nós utilizamos partem de moléculas de origem natural. Reparem que tudo gravita à volta de processos de sustentabilidade”, afirma ao PÚBLICO Ana Rita Duarte, numa conversa telefónica.

A investigadora explica que a ideia fundamental do projecto é que se utilize os solventes verdes para extrair compostos bioactivos das folhas, dos caules ou da raiz da planta. Empresas que produzem cannabis medicinal, como a GreenBePharma – que actua como parceira no projecto – vendem sobretudo as flores, sendo que as restantes partes do vegetal tendem a ser descartadas apesar de conterem compostos que podem ser interessantes. O objectivo é verificar se os compostos ali presentes “têm uma bioactividade muito específica”, ou seja, se apresentam propriedades antibacterianas ou antifúngicas.

Por outras palavras, os cientistas querem saber se os restos de cannabis “escondem” armas químicas que possam ajudar a combater fungos e bactérias que atacam as oliveiras portuguesas. Se assim for, estas substâncias poderão funcionar como pesticidas biológicos (ou biopesticidas), auxiliando no controlo de agentes patogénicos quando borrifados sobre o olival.

Ana Rita Duarte sublinha a possibilidade de este projecto criar uma nova cadeia de valor associada ao aproveitamento de um subproduto da indústria de cannabis com fins medicinais. Por lei, estes resíduos teriam de ser destruídos, uma vez que configuram excedentes do processo de produção de uma planta cujo cultivo é regulado. Agora, neste projecto, um resíduo torna-se um recurso com o potencial de tornar os olivais mais produtivos.

O projecto, intitulado ValorCannBio: Valorização de subprodutos da canábis medicinal como biopesticida para o olival, venceu esta edição do Programa Promove na categoria de projectos-piloto inovadores. Este concurso anual conta com a colaboração da Fundação para a Ciência e a Tecnologia e do BPI.

Cuidar da saúde do olival

Há duas doenças do olival na mira dos cientistas: a gafa e a tuberculose (ou ronha da oliveira), que são as preocupações mais comuns daqueles que se dedicam a esta cultura, incluindo a empresa AGR Global, parceira do projecto. A gafa é causada por fungos do género Colletotrichum e afecta sobretudo os frutos: as azeitonas começam por apresentar manchas, depois ficam com aspecto engelhado e acabam por cair prematuramente.

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Tumores provocados pela bactéria responsável pela tuberculose (ou ronha do olival) Cristina Azevedo/InnPP

Já a tuberculose é causada por uma bactéria (Pseudomonas savastanoi) que se aloja nas feridas dos troncos ou galhos, desencadeando a formação de tumores. As oliveiras doentes tendem a ficar mais frágeis e os seus frutos a adquirir um certo sabor amargo.

O combate à gafa é considerado prioritário, segundo uma nota de imprensa da Universidade Nova de Lisboa, uma vez que pode “causar perdas de produção que podem atingir os 100%, a que correspondem mais de 50 milhões de euros, a redução da qualidade do azeite e estar a levar ao desaparecimento do património genético das variedades de olival tradicional como a galega, altamente susceptível à doença”.

Ana Rita Duarte sublinha que as soluções que existem hoje no mercado para combater a gafa e a tuberculose “não são eficazes” e consistem em pesticidas de síntese química, que estão a ser descontinuados e cujo uso a Comissão Europeia considerou reduzir. “Temos de começar já a trabalhar para dispor de alternativas quando os pesticidas de síntese forem banidos pela União Europeia”, afirma a investigadora.

Recorde-se que a Comissão Europeia havia proposto reduzir para metade o risco e a utilização de pesticidas tradicionais até 2030, mas o Parlamento Europeu rejeitou o diploma, em Novembro do ano passado, numa votação final renhida. Embora Bruxelas tenha deixado cair a proposta para o uso sustentável dos pesticidas, cedendo à pressão dos agricultores, o tema da redução dos pesticidas continua sobre a mesa de discussão europeia.

Cristina Azevedo, directora do departamento de novos pesticidas biológicos do InnovPlantProtect, sediado em Elvas, afirma no comunicado que, “ao desenvolver biopesticidas de base biológica de subprodutos provenientes da uma indústria em franca expansão a nível nacional, e nomeadamente no Alentejo, o projecto ValorCannBio contribuirá para as metas estabelecidas pela Comissão Europeia na Estratégia do Prado ao Prato e da Biodiversidade, da redução de 50% do uso de pesticidas de síntese química até 2030”.