O mundo estará preparado para um verdadeiro Pacto para o Futuro?

Cimeira do Futuro decorre no domingo e segunda-feira nas Nações Unidas, em Nova Iorque, com a assinatura do Pacto para o Futuro, documento que pretende ser o primeiro passo para uma ONU 2.0.

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A Cimeira do Futuro foi convocada por António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, para repensar as estruturas internacionais e o futuro do multilateralismo David Dee Delgado / REUTERS
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“Não podemos criar um futuro adequado para os nossos netos com sistemas construídos para os nossos avós.” As palavras de António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, procuram resumir a aura da Cimeira do Futuro, a reunião de alto nível da ONU que decorre neste domingo e na segunda-feira para “forjar um novo consenso internacional sobre a forma de garantir um presente melhor e salvaguardar o futuro”.

Eclipsada pelo contexto geopolítico de guerras, competição comercial e falta de confiança nos e entre os líderes políticos, a Cimeira do Futuro, convocada por Guterres em 2021 no seu relatório Nossa Agenda Comum, pretende ser “um primeiro passo essencial para tornar as instituições globais mais legítimas, eficazes e adequadas ao mundo de hoje e de amanhã”, afirmou o líder da ONU aos jornalistas, no início da semana.

O grande resultado desta cimeira será a assinatura do histórico Pacto para o Futuro, um documento “orientado para a acção” que tem sido alvo de debates e diferentes rascunhos há vários meses, que coloca em cima da mesa o reforço da cooperação global e como salvar os Objectivos do Desenvolvimento Sustentável do falhanço.

Os olhares mais pragmáticos estão atentos às propostas para reformar a arquitectura financeira internacional e o Conselho de Segurança da ONU, criados em meados do século passado, numa altura em que muitos países ainda estavam sob domínio colonial.

A bolha das instituições internacionais tem estado a fervilhar com as diferentes versões do documento que têm sido divulgadas – o Pacto para o Futuro já vai na quarta versão, divulgada a 13 de Setembro. Em anexo, estão também a Declaração sobre as gerações futuras e um Pacto Digital Global, que têm alimentado esperanças e várias desilusões.

Poderá esta Cimeira do Futuro ser um ponto de viragem para uma ONU 2.0? Ou apenas mais um ritual de boas intenções, cujos resultados serão subtilmente ignorados depois dos discursos que ouviremos por estes dias?

Repensar as estruturas

Talvez esta ambição pareça utópica, mas há quem identifique uma receptividade cada vez maior por transformações nas instituições que lhes permitam ser mais eficazes. Uma parte do diagnóstico é difícil de refutar: as instituições multilaterais “nascidas numa era passada para um mundo passado”, como descreve Guterres, simplesmente não conseguem acompanhar o ritmo dos novos tempos.

Os sinais podem ver-se nos bloqueios do Conselho de Segurança da ONU em matérias como a invasão da Ucrânia pela Rússia ou o bombardeamento de Israel ao território palestiniano na sequência do ataque do Hamas.

Também quando se fala em desenvolvimento – a capacidade dos Estados de proporcionarem bem-estar e uma vida digna aos seus cidadãos – a ONU tem sido incapaz de levar para a vida das pessoas os compromissos assumidos na chamada Agenda 2030, que em 2015 consagrou 17 Objectivos do Desenvolvimento Sustentável, entre os quais “erradicar a fome” ou “garantir educação de qualidade”.

É por isso que esta Cimeira do Futuro tem sido vista também como um esforço que pode definir o legado de Guterres enquanto secretário-geral na ONU (mandato que termina dentro de pouco mais de dois anos), assim como a capacidade de se reinventar da própria instituição internacional, impotente perante os conflitos e crises que se multiplicam a nível global.

“Não baixar os braços”

No fundo, “o Pacto para o Futuro é mais pragmático do que a Agenda 2030”, explica João Ferrão, conselheiro do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável (​CNADS)​. “Não refere apenas o quê – os ODS –, mas agora centra-se também no como, quais são as condições para lá chegarmos, num contexto que é muito diferente daquele que havia.” Em suma, “mantém ambição, mas introduz pragmatismo”.

Ecoando a ideia transmitida por Guterres, João Ferrão vai explicando que, de certa forma, existe um reconhecimento de que as ferramentas à disposição não têm estado à altura dos desafios cada vez mais complexos do presente. A solução? “O documento insiste muito na questão do multilateralismo, do financiamento e da governança.”

E fará sentido, num contexto de policrise, adoptar um documento com um tom ainda mais utópico do que o anterior? João Ferrão prefere enquadrar de outra forma. Se, por um lado, a Agenda 2030 trazia a mensagem de “não deixar ninguém para trás”, o Pacto para o Futuro passa uma nova mensagem: “Não baixar os braços.”

Tripla crise planetária

“Estamos a viver um momento muito desafiante de tripla crise planetária, com as alterações climáticas, a perda de biodiversidade e a poluição, e que é agravada pelas desigualdades sistémicas”, descreve Astrid Puentes Riaño, relatora especial da ONU sobre o direito humano a um ambiente limpo, saudável e sustentável.

“Todos somos afectados por esta tripla crise”, reforça, “mas os que se encontram em situações mais vulneráveis, comunidades que têm sido historicamente mais marginalizadas ao longo dos séculos, são os que hoje estão a sofrer mais com estes impactos e, ao mesmo tempo, os que menos contribuíram para esta crise”.

Astrid Puentes Riaño espera que a Cimeira do Futuro seja marcada por um compromisso renovado dos Estados em “serem coerentes” com as suas obrigações ao abrigo do direito internacional. “Existem muitos compromissos para a protecção da biodiversidade, os direitos humanos, as alterações climáticas, a protecção dos oceanos. O problema é a falta de cumprimento desses compromissos, tanto por parte dos países como das empresas”, alerta a jurista.

Obsessão com o crescimento

Para Olivier de Schutter, relator especial da ONU sobre pobreza extrema e direitos humanos, a Cimeira do Futuro será um bom teste à capacidade de passar das palavras para a acção. Em entrevista ao Azul, explica que uma das alavancas necessárias para desbloquear este impasse é repensar a “obsessão” com o crescimento económico nas políticas de desenvolvimento.

A ideia de moldar as economias “além do PIB” tem sido explorada por instituições como a OCDE e defendida pelo próprio António Guterres. Num policy brief de Maio de 2023, sob o título “Valorizar o que conta: enquadramento para progresso além do produto interno bruto”, o secretário-geral da ONU defende a criação de um grupo independente de especialistas de alto nível para criar um quadro com indicadores-chave que possam ser usados pelos países para orientar as decisões políticas.

O que fazer então às derrapagens orçamentais? De olhos postos nas dívidas históricas de dezenas de países em desenvolvimento, tem havido uma pressão cada vez maior para encontrar mecanismos de reestruturação ou até perdão destas dívidas, acompanhados de uma reformulação dos instrumentos dos bancos multilaterais, de forma a ter como base um leque mais diverso de indicadores que permita aliviar os juros dos empréstimos ou mesmo aumentar a disponibilidade para subvenções.

Da parte de Olivier de Schutter, que já deixou o seu contributo num relatório sobre “Erradicar a pobreza além do PIB”, o relator da ONU já começou a trabalhar num roteiro colaborativo sobre esta matéria. “Precisamos não só de ter uma visão do objectivo, mas também de saber como lá chegar, conhecer as diferentes etapas. É isso que vamos construir.”

Gerações futuras

Apesar das negociações a todo o vapor para eventuais alterações na versão final dos compromissos que sairão desta cimeira, já quase só são possíveis ajustamentos. Na sua terceira revisão, o Pacto para o Futuro viu ser finalmente incluído o compromisso de “abandonar os combustíveis fósseis”, uma pequena frase que foi fruto de uma enorme pressão da sociedade civil, incluindo uma carta aberta que reuniu 77 líderes mundiais e laureados com o Prémio Nobel.

Além do Pacto para o Futuro, a cimeira também resultará numa Declaração sobre as Gerações Futuras, que tem sido igualmente alvo de grande debate, entre outros motivos, pela recusa dos países em reconhecerem "direitos" às gerações futuras.

O debate sobre direitos das gerações futuras não é novo, mas a hipótese de consenso sobre a declaração que resultará da cimeira deu tracção a outras iniciativas como os Princípios de Maastricht sobre as Gerações Futuras, em que especialistas de renome mundial defendem que se reconheçam direitos às pessoas que terão que viver no planeta condenado pelas acções que tomarmos hoje. Para já, não se prevê que estas ganhem direitos – mantém-se a linguagem de “necessidades e interesses”.

Em cima da mesa estão também apelos à criação do mandato para um enviado especial das Nações Unidas para as Gerações Futuras – que não deve, aliás, ser confundido com o enviado para a Juventude.

Além da humanidade?

Também não se prevê na Declaração sobre as Gerações Futuras a inclusão de “direitos multiespécies”, uma denominação que talvez possa soar um pouco esotérica, mas que reflecte a importância dos outros seres vivos – animais e plantas – na sobrevivência da humanidade, conforme defende o relator especial da ONU sobre o direito ao desenvolvimento, Surya Deva, no seu relatório sobre "Direito ao desenvolvimento das crianças e das gerações futuras", publicado em Julho deste ano.

“Gostava que [o Pacto] fosse mais transformador em termos de orientação colectiva dos Estados”, diz ao PÚBLICO Surya Deva, para quem o documento actual “não é muito ambicioso nem suficientemente transformador”.

Em entrevista ao Azul, Deva recorda que os direitos humanos são um dos três pilares do sistema da ONU, essenciais não apenas para haver desenvolvimento, mas para garantir paz e segurança e defrontar as crises que o mundo enfrenta, sejam alterações climáticas, guerras, restrições ao espaço cívico ou a crise do custo de vida. “Nós temos as soluções”, afirma o relator da ONU. “Espero que os Estados ultrapassem a sua visão míope e a sua política tacanha.”

“Apetite crescente” por transformação

A Cimeira do Futuro é a primeira de uma série de reuniões intergovernamentais que vão conduzir a um novo consenso internacional para definir os objectivos de desenvolvimento para o período de 2030-2045. O consenso no que toca à dimensão económica destes compromissos será construído também em Junho do próximo ano, na 4.ª Conferência Internacional sobre o Financiamento para o Desenvolvimento (FfD4), e em Novembro de 2025, na Cimeira Mundial para o Desenvolvimento Social.

Para Olivier de Schutter, estes três eventos trazem a oportunidade de repensar, para além dos ODS, as prioridades que as instituições internacionais devem estabelecer. “Sinto que há um enorme apetite para ampliar a imaginação política”, afirma o relator especial da ONU sobre pobreza extrema e direitos humanos, em entrevista ao Azul.

Apesar do descontentamento com a falta de ambição dos documentos, Surya Deva acredita que possa ser “aproveitado no futuro para fazer algumas mudanças e dar um impulso transformador”. O diálogo aberto pela Cimeira do Futuro, afirma, sairá reforçado com a assinatura destes compromissos. “É um progresso gradual, passo a passo. Vejo o pacto como um dos tijolos importantes de que precisamos.”

Já Astrid Puentes Riaño sublinha a importância da tónica na acção. “Temos de passar das palavras às acções hoje – não em 2030, não em 2040, não em 2050, mas a partir de hoje.”