Os povos indígenas cuidam de 80% da biodiversidade? Não é bem assim

Artigo na Nature defende que biodiversidade não é mensurável e valor é falso, mas isso não diminui a importância dos povos indígenas na sua protecção, com os seus “sistemas de cuidado com milénios”.

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Muitas regiões com níveis altos de biodiversidade são habitadas por povos indígenas, como na Amazónia Nelson Garrido
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O número tem surgido em artigos científicos, em relatórios, em convenções. Até o realizador James Cameron, autor de Avatar, referiu: 80% da biodiversidade terrestre existe nos territórios dos povos indígenas. Este valor tem servido como argumento para mostrar a importância dos povos indígenas na protecção da biodiversidade do planeta, mas o número é falso.

Um artigo publicado recentemente na Nature faz um histórico do aparecimento desse número na literatura científica, desmontando a sua origem, problematiza ainda a contabilização da biodiversidade a partir deste tipo de números e argumenta, por fim, que asserções destas são prejudiciais para a própria protecção dos povos indígenas e dos seus territórios.

“A comunidade global de conservação tem de abandonar o argumento dos 80% e, em vez disso, tem de reconhecer de uma forma abrangente os papéis cruciais dos povos indígenas em proteger as suas terras e os seus mares – e tem de fazer isso baseando-se em provas que já existem”, lê-se no artigo, determinando o seu teor.

Não é, por isso, uma questão de pôr em causa a importância dos povos indígenas. “Apesar de as terras dos povos indígenas não serem imunes à perda de biodiversidade, vários estudos globais estão a mostrar que estes territórios albergam mais espécies do que áreas protegidas equivalentes e são, de modo geral, tão eficazes a proteger contra a desflorestação [como as áreas protegidas]”, começa por explicar ao PÚBLICO, por e-mail, Álvaro Fernández-Llamazares, primeiro dos 13 autores do artigo, três dos quais indígenas.

“A questão não é se os territórios dos povos indígenas albergam uma biodiversidade significativa, porque já sabemos que o fazem. A questão é sobre as métricas e as estatísticas que usamos na ciência, na política e na prática para dar destaque ao valor importante da gestão que fazem”, acrescenta o investigador, que é etnobiólogo da Universidade Autónoma de Barcelona, em Espanha. “Temos de assegurar que a informação que alicerça as políticas de conservação é precisa, correcta e bem fundamentada. De outra forma, não vai resistir ao escrutínio.”

A origem de um número

Há várias camadas que vão sendo desmontadas pelo artigo sobre este assunto. A primeira é a origem daquele número. A partir da pesquisa que fizeram, os autores descobriram que, até 1 de Agosto último, foram publicados 348 documentos onde é apresentado o argumento, 186 em revistas com revisão de pares.

O documento mais antigo é de um relatório de 2002 da Comissão do Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, onde se diz que os povos indígenas “cuidam de 80% da biodiversidade do mundo nos seus territórios e terras ancestrais”. No entanto, a origem desta informação não é atribuída naquele relatório.

Mas analisando os documentos um pouco mais recentes onde o número surge, a equipa identificou duas possíveis origens. Uma, que parece ser a origem mais antiga, está citada em três documentos, entre os quais um relatório de 2009 da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês). “Aproximadamente, 80% da biodiversidade mundial que resta encontra-se nos territórios dos povos indígenas”, lê-se no relatório da FAO, que refere um artigo incluído no terceiro volume da Enciclopédia da Biodiversidade, publicada pela Academic Press, de 2001.

Esse documento, escrito por Víctor Toledo, biólogo da Universidade Nacional Autónoma do México, tem como argumento central o facto de os povos indígenas habitarem territórios de grande biodiversidade e terem uma grande importância na sua protecção. Mas a única vez que aquela percentagem vem referida é quando se lê que “perto de 80% das ecorregiões terrestres [de grande importância a nível da biodiversidade] são habitadas por um ou mais povos indígenas”.

Uma ecorregião é uma unidade de terra ou de água, com uma certa dimensão, onde existe uma comunidade natural que partilha certas características do ponto de vista da dinâmica das suas espécies e partilha condições ambientais semelhantes. Mas não há qualquer referência a uma contabilização da biodiversidade existente nesses territórios, como depois se interpreta no relatório da FAO.

A segunda referência foi citada num relatório do Banco Mundial de 2008, um documento que é um marco na história deste número, já que a partir de então ele foi referido cada vez mais frequentemente, adiantam os autores do artigo da Nature. O relatório diz que “as terras indígenas tradicionais (…) coincidem com áreas que contêm 80 por cento da biodiversidade do planeta” e cita uma publicação de 2005, da organização sem fins lucrativos World Resources Institute.

Mas, nesse relatório de 2005, a única referência de uma percentagem de “80%” relacionada com o tema da biodiversidade é sobre sete comunidades indígenas que vivem nas Filipinas e que “mantêm mais de 80% do coberto florestal original de elevada biodiversidade”. Além de ser um exemplo específico a nível geográfico, mais uma vez não há qualquer avaliação da quantidade da biodiversidade em causa.

A citação continuada destes números mostra que, por vezes, os cientistas “acabam por ter a fuga confortável que é encontrar um valor estimado na literatura e indicam esse valor, transferindo a responsabilidade da estimativa para quem fez a estimativa”, diz ao PÚBLICO Jorge Palmeirim, biólogo na área de ecologia, professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e presidente da Liga para a Protecção da Natureza, que não participou no estudo. “Mas quando se vai à raiz desta estimativa, percebemos que tem pés de barro”, aponta o investigador. “Infelizmente, às vezes, as pessoas defendem causas e exageram os números para apoiar essas causas”, diz ainda, referindo que tinha noção que este valor era questionável.

Quantificar a biodiversidade

A segunda problemática lançada pelo artigo é relacionada com a possibilidade de se quantificar a biodiversidade. “O argumento dos 80% é baseado em dois pressupostos: que a biodiversidade pode ser dividida em unidades que se podem contar, e que isto pode ser mapeado espacialmente a nível global. Nenhum dos feitos é possível”, explica-se no artigo.

A biodiversidade, recordam os autores, é a “diversidade que existe dentro de uma espécie, entre espécies e dos ecossistemas”, citando um documento da Convenção da Biodiversidade. Quando se olha apenas para o número de espécies, fica de fora a diversidade existente dentro de uma mesma espécie e a diversidade que surge nas trocas entre espécies que tornam os ecossistemas complexos.

Mas mesmo quando se pensa a partir da ideia de espécie, um conceito muito debatido dentro da própria biologia, há vários problemas. O mais óbvio é que se estima que existam milhões de espécies ainda desconhecidas para a ciência. “Tendemos a conhecer mais acerca das aves, dos mamíferos e das plantas, do que das formas de vida muito mais diversas, mas mais pequenas”, explica ao PÚBLICO por e-mail Stephen T. Garnett, professor de conservação e de sistemas de vida sustentáveis da Universidade de Charles Darwin, em Casuarina, na Austrália, e último autor do comentário da Nature.

Mesmo os grandes grupos mais conhecidos, como as aves, os mamíferos, ou os primatas dentro dos mamíferos, em que nalguns casos existem contabilizações do número de espécies nos territórios indígenas, levantam questões. Há casos em que aquelas espécies não ocorrem apenas nos territórios indígenas. Nesse caso, como se obtém um número que carregue o valor daqueles 80%, tendo em conta a importância da biodiversidade existente dentro de cada espécie? “Será que uma espécie conta se apenas 1% da população existir em território indígena, e se for 5%, e se for 50%? Não existe resposta para isto porque o valor [de percentagem] não está apoiado em dados que nos permitam responder a estas questões”, salienta Stephen T. Garnett.

Milénios a cuidar

Num artigo recente do site The Conversation, Álvaro Fernández-Llamazares e Stephen T. Garnett referiam que levaram cinco anos a “reunirem apoio” para desafiarem a veracidade daquele número, já que havia um receio de que este gesto fosse usado contra os povos indígenas. E elencam as razões que os levaram a publicar o artigo. Vários argumentos estão relacionados com o próprio conhecimento que os povos indígenas têm do seu território e da biodiversidade que lá existe, que ficam em risco com este tipo de avaliações, argumentam.

“Muito daquilo que os povos indígenas conhecem sobre a biodiversidade nos seus territórios, não pode ser conhecido sem se partilhar a sua visão do mundo. Por isso, as pessoas de fora, em grande medida, ignoram e menosprezam esse conhecimento”, explica Stephen T. Garnett.

Ao haver um número final que estabelece um valor para a biodiversidade daqueles territórios, supostamente obtido a partir dos fazeres e preceitos da ciência ocidental, o conhecimento e as relações que os povos indígenas têm com o seu território, que está na base da conservação que fazem, podem deixar de ser importantes, temem os autores.

“Para nós, isto faz diminuir o significado dos valores sociais e culturais ricos que servem como guias para a protecção e cuidado da natureza” feita pelos povos indígenas, explicam os dois autores no artigo do The Conversation, referindo que já testemunharam pelo menos uma situação em que o valor de 80% foi usado como arma de arremesso contra os povos indígenas: “O argumento era que se eles cuidavam de uma percentagem tão alta da biodiversidade, então porque é que havia tantas espécies que estavam em declínio?”

Na razão inversa, havendo um número, pode haver quem queira definir percentagens aceitáveis desse mesmo declínio. “Numa visão de mundo em que o tempo pode ser circular, em que as espécies são tótemes com ligações ao mundo espiritual, um número não significa nada”, diz-nos Stephen T. Garnett. “Se existem números, pode haver limiares – a redução de ‘20% da biodiversidade’ poderia ser aceitável. Isso seria como dizer que a perda de 10% dos teus filhos seria aceitável, ou a perda de 20% dos teus dedos”, acrescenta.

Pelo contrário, esse conhecimento e visão do mundo deverão ser integrados num pensamento de conservação, defende por sua vez Álvaro Fernández-Llamazares: “Estes territórios mostram provas de sistemas de cuidado com milénios de anos e reflectem um legado das formas de gestão dos povos indígenas. Os cientistas devem trabalhar a partir da premissa de que todas estas comunidades indígenas têm um conhecimento que é essencial para sustentar a fábrica da vida que nos tece a todos.”

O problema do dinheiro

Para Jorge Palmeirim, pode haver ainda um problema da desresponsabilização que acompanha aquele número. “Quando dizemos que 80% da biodiversidade está a ser protegida, subentende-se naquilo que é dito, pelos povos indígenas, estamos no fundo a desresponsabilizar o resto da sociedade de tomar medidas de conservação”, argumenta.

Para o biólogo, que conhece melhor a realidade africana, embora a biodiversidade esteja “mais bem protegida” nas áreas indígenas em geral, isso nem sempre está garantido. “No caso das comunidades indígenas muito dependentes dos recursos naturais, porque não estão dentro da economia de mercado, o respeito pelos recursos é algo que está embebido na sua cultura, como necessidade de sobrevivência”, diz. “E quando não há dinheiro em circulação, não há vantagem em retirar mais recursos do que aqueles que são necessários para a sobrevivência.”

No entanto, muitas comunidades indígenas estão, de algum modo, dentro da economia de mercado e necessitam de dinheiro, refere Jorge Palmeirim. “As pessoas vão buscar dinheiro à venda de caça e isso faz com que a grande e média fauna africana esteja extremamente depauperada”, adianta, dando um exemplo em que a conservação da biodiversidade fica posta em causa. Por isso, o biólogo defende que não é possível demitir-nos da protecção dos habitats.

O que fazer, nestes casos? “É importante reconhecer que as comunidades indígenas são parceiros muito importantes da conservação”, responde Jorge Palmeirim. “Depois, há que compensar aquelas que abdicam da exploração intensiva dos recursos naturais da sua área, a favor da conservação.”