UE é mais dependente do urânio russo para a indústria nuclear do que antes da guerra
Produção de energia nuclear mantém-se estável, embora a ONU preveja o seu crescimento até 2050. Guerra traz novos riscos. Capacidade instalada da energia solar cresce 1 GW por dia, diz relatório.
O risco de um desastre nuclear causado pela invasão da Ucrânia pela Rússia em Fevereiro de 2022 continua a ser real, e até alargado, dois anos e meio depois do início da guerra. E, no entanto, apesar das várias levas de sanções contra o regime de Vladimir Putin, e o desejo da União Europeia de deixar de depender do gás natural russo, a dependência de vários países europeus do fornecimento do urânio importado da Rússia aumentou, em vez de diminuir.
Esta é uma das conclusões do Relatório Mundial sobre o Estado da Indústria Nuclear 2024, produzido por uma série de especialistas cépticos quanto aos benefícios da energia nuclear e divulgado na quinta-feira. Com mais de 500 páginas, é uma referência anual de análise do sector, com um olhar crítico.
Mostra que a quantidade de combustível nuclear importado para os 19 reactores VVER (russos) de água pressurizada existentes em países da UE duplicou, diz o relatório, entre 2021 – um ano antes do início da invasão Rússia da Ucrânia – e 2023.
A Eslováquia quadruplicou a importação e a Hungria mais do que duplicou, neste período. Mas também a Suíça, por exemplo, que fortemente depende da agência de energia atómica russa Rosatom para obter o urânio enriquecido necessário para as centrais de Leibstadt e Beznau, salienta o relatório. O nuclear representa 32,4% da produção bruta de energia na Suíça.
A empresa estatal russa Rosatom, que tem um papel activo na ocupação militar da central de Zaporijjia, na Ucrânia, é a principal construtora de centrais nucleares no mundo. Em meados de 2024, tinha 26 unidades em construção em oito países (incluindo a própria Rússia).
Proteger centrais nas guerras
Se nos habituamos a ter o coração nas mãos por causa da grande central ucraniana de Zaporijjia, ocupada por tropas de Moscovo, ou até de Tchernobil, invadida no início da guerra, o ataque da Ucrânia lançado a 6 de Agosto contra a região russa de Kursk criou uma nova frente de risco nuclear na Europa, porque ali fica uma das três maiores centrais nucleares russas.
Rafael Grossi, director da Agência Internacional de Energia Atómica (IAEA, na sigla em inglês, um organismo das Nações Unidas que tem a dupla missão de fiscalizar e promover o uso do nuclear civil) visitou a central de Kursk no fim de Agosto, e viu danos causados por um drone – sem saber se seria russo ou ucraniano.
Salientou que esta central é especialmente vulnerável porque, ao contrário das estruturas mais modernas, não tem uma cúpula de contenção que poderia protegê-la, no caso de um ataque com drones, mísseis ou artilharia.
Instado por um jornalista a condenar os danos causados pelo drone como uma “provocação nuclear” (da Ucrânia), Grossi respondeu que não era seu papel apontar o dedo. “Mas é óbvio que não podemos separar o que vimos aqui da actividade militar recente”, adiantou.
A Rússia queria uma condenação mais clara, e manifestou o seu descontentamento, através de Maria Zakharova, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Moscovo, relatou a Reuters.
“A guerra em torno das centrais nucleares de Zaporijjia e Kursk representa uma perigosa mudança de paradigma. Houve uma escalada nas preocupações com a segurança das centrais nucleares: não há apenas ameaças terroristas, mas também de grandes potências a ocupar e atacar centrais nucleares”, escreveu, num comentário na revista Bulletin of the Atomic Scientists, Ray Hughes, do Laboratório Nacional Lawrence Livermore, nos Estados Unidos, especializado em segurança nuclear.
“Se o apetite pela energia nuclear crescer, a comunidade internacional deve estabelecer um acordo para proteger as centrais nucleares durante conflitos”, apelou Ray Hughes (que não está relacionado com o relatório sobre a indústria nuclear), num artigo em que equaciona se o nuclear é uma solução para o futuro da energia de que necessitamos ou um potencial alvo militar.
A crescer, estável ou a diminuir?
E é verdade que está a crescer o apetite pela energia nuclear ou não?
“Ao contrário da percepção muito difundida, a energia nuclear continua a ser irrelevante no mercado internacional de tecnologias de geração de electricidade. [Avanços no] fotovoltaico e armazenamento de energia podem ser os factores decisivos para a adaptação das decisões políticas às realidades industriais”, lê-se no relatório sobre o estado da indústria nuclear, redigido, recorde-se, por peritos de energia que vêem com cepticismo este sector.
O relatório estima que o nuclear foi responsável em 2023 pela geração de 9,1% da energia comercializada no mundo (9,2% em 2022). Isto significa 393 GW (gigawatts, ou mil milhões de watts), de capacidade instalada, ou 2061 TW/ano (terawatts por ano, ou seja, um milhão de milhões, um bilião, de watts) de electricidade produzida. Mas este valor tem-se mantido estável ao longo das últimas duas décadas.
“A parcela da energia hídrica e nuclear tem diminuído gradualmente nos últimos 30 a 40 anos, devido a falta de investimento. Recentemente, houve um aumento do uso da energia eólica e fotovoltaica, com a sua quota combinada a atingirem 13% em 2023”, reconhece, por seu lado, a IAEA, no relatório Estimativas de Electricidade e Energia Nuclear até 2050, divulgado também esta semana.
O percurso da energia solar e eólica, ao contrário, tem sido uma acentuada curva ascendente, sobretudo a partir de 2010: a capacidade instalada fotovoltaica era em 2023 de 1412 GW e a energia do vento 1017 GW. Quando à produção efectiva de electricidade, a energia eólica está quase a apanhar o nuclear, com 2302 TW/ano. A solar vai-lhe no encalço, com 1625 TW/ano.
O relatório do grupo céptico em relação ao nuclear salienta que o total das energias renováveis em 2023 atingiu 43% da capacidade instalada de produção de electricidade. “A nível global, cerca de 1 GW de nova capacidade solar está a ser instalada todos os dias, o que é praticamente o mesmo que surgia de novo todos os anos há duas décadas”, lê-se no relatório.
“Em contraste, a capacidade nuclear manteve-se relativamente estável, aumentando de 350 GW para 364 GW”, de 2000 a 2023, diz o relatório. “Estas tendências ilustram o contraste entre o grande crescimento das renováveis e a estagnação da produção de energia nuclear”.
A AIEA, no entanto, mantém uma perspectiva optimista sobre o crescimento da energia nuclear no mundo até 2050. Na pior das hipóteses, prevê um aumento de 40%, para 514 GW de capacidade instalada; no cenário mais optimista, aponta para um aumento de 2,5 vezes da actual capacidade, alcançando 950 GW em meados do século.
Factor importante para este crescimento é a entrada em funcionamento de uma nova tecnologia, dos pequenos reactores modulares (SMR na sigla em inglês), centrais mais pequenas do que as actuais, em teoria com menos riscos, que poderiam ser construídas mais próximas de grandes centros populacionais, e usadas para fins concretos – por exemplo, para climatização de uma cidade.
No cenário mais optimista da IAEA, os SMR contribuiriam para 24% da capacidade instalada até 2050; no mais conservador, 6%. Mas é preciso levar em conta que não existe actualmente nenhum destes reactores em funcionamento, apenas tecnologias a serem testadas para eventualmente virem a ser usadas.
“A distância entre a propaganda acerca dos SMR e a realidade continua a crescer. A indústria nuclear e múltiplos governos estão a dobrar a aposta nos investimentos em SMR, tanto em termos monetários como políticos”, alerta o relatório sobre a indústria nuclear. Por exemplo, a Aliança Industrial Europeia de Pequenos Reactores Nucleares foi lançada pela Comissão Europeia com o objectivo de “acelerar o desenvolvimento, demonstração e montagem” de SMR na Europa até ao início dos anos 2030. A UE apoia o nuclear como uma tecnologia de baixo carbono, não propriamente como energia renovável, embora o assunto continue a não gerar consenso nos Vinte e Sete.
“Mas a realidade é mais sombria. Os projectos de SMR continuam a sofrer atrasos ou a serem cancelados”, frisa o relatório do grupo céptico sobre a energia nuclear.