Portugal pode não atingir a 100% nenhum dos Objectivos do Desenvolvimento Sustentável

Segundo a Plataforma ODS Local, os objectivos de desenvolvimento em que os municípios têm melhor desempenho médio são educação de qualidade, água potável e saneamento, e protecção da vida marinha.

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A agricultura biológica é um dos indicadores que mostram progresso no ODS2, dedicado aos sistemas alimentares Nuno Ferreira Santos
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Uma análise da Plataforma ODS Local aos indicadores dos municípios relativos aos Objectivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) estima que Portugal não vai atingir 100% das metas em nenhum dos 17 ODS caso se mantenham as tendências verificadas desde 2015 até hoje.

Na contagem decrescente para a Cimeira do Futuro, que tem lugar na sede da ONU, em Nova Iorque, onde se irá debater uma melhor adaptação das instituições internacionais aos desafios contemporâneos, a Plataforma ODS Local lança o relatório sobre o “Estado dos ODS em Portugal”, que olha para os indicadores recolhidos sobre cada um dos municípios portugueses.

De acordo com o relatório, os objectivos de desenvolvimento em que os municípios portugueses têm melhor desempenho médio são o ODS4, sobre educação de qualidade, o ODS6, relativo à água potável e saneamento, e o ODS14, com metas de protecção da vida marinha.

Indicadores alarmantes

Os investigadores indicam ainda que a maioria dos ODS estão a “metade ou mais de metade do caminho a percorrer até 2030” – mas a um ritmo provavelmente demasiado lento para atingirem os objectivos –, mas há algumas excepções negativas.

Dois ODS estão em situação particularmente alarmante: o ODS2, que estipula o objectivo de erradicar a fome e garantir o acesso de todas as pessoas a “alimentos seguros, nutritivos e suficientes durante todo o ano”, e o ODS13, focado em adoptar medidas urgentes para combater as alterações climáticas e os seus impactos, não deverão ter sequer 50% das suas metas cumpridas até 2030, com um retrocesso significativo em relação ao avanço que se registava em 2015, quando os ODS foram lançados.

Também o ODS5, sobre igualdade de género, tem “progredido de forma insuficiente”.

A análise da Plataforma ODS Local mostra disparidades tanto entre regiões como entre os municípios de cada região. De acordo com o relatório, é nas regiões Centro, Norte e Área Metropolitana de Lisboa que os municípios apresentam um melhor desempenho médio global no progresso dos vários ODS.

O que conseguimos medir?

É preciso ter algum cuidado na análise devido à “qualidade dos indicadores”, começa por sublinhar João Ferrão, conselheiro do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável (​CNADS) e coordenador da Plataforma ODS Local, ao explicar que há ODS mal encaminhados, sim, mas por diferentes motivos.

“Ter uma imagem da realidade é impossível”, ressalva também o biólogo David Avelar, da startup 2adapt – Serviços de Adaptação Climática, outro dos autores do relatório. “Os indicadores serão sempre uma aproximação.” É por isso que o relatório não apresenta rankings, com uma análise que segue uma lógica de “comparação evolutiva” – procurar os municípios que mais têm conseguido avançar dentro dos seus contextos específicos.

Para medir o objectivo de erradicar a fome e garantir o acesso de todas as pessoas a “alimentos seguros, nutritivos e suficientes durante todo o ano” (ODS2), por exemplo, não existem sequer “bons indicadores” a nível local, em particular para as metas relacionadas com a alimentação e a fome.

O estudo da Plataforma ODS Local mostra que foi possível recolher sobretudo dados sobre as metas relacionadas com o pilar da sustentabilidade dos sistemas agrícolas, não havendo grandes informações, por exemplo, sobre os indicadores relativos à fome. Haverá ainda uma larga margem para recolher melhores dados sobre o ODS2, como as imagens de satélites – que poderão traçar um retrato muito mais preciso, por exemplo, sobre os tipos de ocupação do solo, como são as culturas hiperintensivas.

Uma nota ainda sobre as sinergias entre os diferentes objectivos: “A agricultura sustentável tem componentes ecológicas, produtivas e sociais, e temos que olhar para as três dimensões ao mesmo tempo”, nota João Ferrão, explicando que os fracos resultados no ODS2 relacionam-se, assim, com riscos de retrocesso também no ODS12, que cuida da produção e consumo sustentável.

Demasiada ambição?

O ODS13, dedicado à adopção de medidas urgentes para combater as alterações climáticas e os seus impactos, inclui metas relacionadas com a adopção de medidas relacionadas com resiliência e adaptação dos territórios, a integração desta dimensão nas políticas e planeamento, assim como educar a população para estes fenómenos e como lidar com eles.

Ao contrário do ODS2, que deixa margem para definir as metas de acordo com as especificidades de cada território, para o ODS13 existem muitas metas definidas internacionalmente, explica João Ferrão. Aqui, o problema do atraso português não é a falta de dados: é a ambição. “Quando se definem metas muito ambiciosas, é natural que se fique longe de as atingir”, diz o especialista em geografia humana. “Todos sabemos que eram metas muito generosas, ambiciosas, mas não vamos conseguir atingir.”

Mas há também outros objectivos de desenvolvimento cujas metas não serão cumpridas – e não será por “culpa” da ambição.

Para João Ferrão, o exemplo mais flagrante é o ODS5, sobre igualdade de género, para o qual “não há falta de informação nem metas demasiado ambiciosas”. “Para a igualdade de género não há desculpa nenhuma”, sublinha.

Há ainda dois objectivos que estão em risco de regredir: o ODS 11, que promove cidades e comunidades sustentáveis, e o ODS12, dedicado à produção e consumo sustentáveis, que “poderão observar um retrocesso em termos de aproximação às metas definidas para 2030” e, por isso, “merecem uma atenção redobrada”.

Qual é a meta?

Para João Ferrão, mais do que a falta de indicadores para medir a evolução em vários objectivos de desenvolvimento, “há outra coisa mais grave”: “Os indicadores só tem sentido se houver metas” – e as metas nem sempre são claras. Algumas estão definidas por acordos internacionais (como as metas de acção climática), outras em políticas europeias, outras em políticas nacionais.

“Os números não falam por si”, alerta João Ferrão. Sem metas assumidas, não saberemos se os aumentos registados são, de facto, suficientes para um verdadeiro progresso.

Tendo em conta o “reconhecimento político muito tardio em Portugal”, o processo de definir ao certo como iremos medir cada um dos indicadores de forma adequada à realidade nacional ainda está em andamento. Ainda assim, João Ferrão aplaude o “arranque muito forte” deste esforço, com a apresentação no ano passado do primeiro relatório voluntário nacional sobre os ODS, e a integração gradual da Agenda 2030 nos documentos estratégia política nacional.

Co-benefícios vs compromissos

O relatório mostra ainda a forma como diferentes objectivos de desenvolvimento se influenciam uns aos outros. Aliás, na prática, quase ninguém trabalha num único ODS, já que estão relacionados uns com os outros, descreve João Ferrão. “Mas também não é sempre todos com todos, senão é um emaranhado.”

Foi assim que, à medida que a Agenda 2030 foi sendo aplicada, vários estudos foram mostrando que “a melhor maneira de avançar o desenvolvimento era trabalhar em conjunto os ODS que se reforçam reciprocamente”, explica João Ferrão.

Há ainda que aprender com os bons exemplos que surgem onde não se esperava. Uma análise ao programa Bairros Saudáveis, criado no contexto da pandemia e entretanto extinto, mostrou que o programa contribuiu para vários ODS ao mesmo tempo, mas houve um par que chamou a atenção dos investigadores: no Bairros Saudáveis, havia sinergias positivas entre o pilar das cidades sustentáveis e o da saúde, uma relação que outros estudos anteriores tinham mostrado que era, por norma, muito difícil.

“Temos de ter uma visão relacional dos ODS, de como se reforçam uns aos outros, e que pode definir-se em abstracto, mas depois é preciso ver intervenção a intervenção, programa a programa”, diz João Ferrão, que lamenta que se tenha “acabado com um projecto que tinha conseguido ultrapassar esse trade-off”.