O conhecimento científico que temos hoje sobre os microplásticos oferece provas “mais do que suficientes” para fundamentar uma acção global contra o aumento contínuo da poluição plástica. Esta é a principal conclusão de um artigo de revisão publicado esta quinta-feira na revista científica Science.
“Nós temos mais do que provas suficientes para afirmar que precisamos de uma mudança. Não podemos dizer que temos de esperar mais um pouco até reunir mais dados acerca do impacto na saúde humana. Há provas mais do que suficientes, e o nosso artigo mostra isso mesmo. Agora temos de agir”, afirma ao PÚBLICO Richard Thompson, director da Unidade Internacional de Investigação sobre o Lixo Marinho da Universidade de Plymouth, na Inglaterra, numa videochamada.
Richard Thompson, um cientista britânico que estuda o resíduos no oceano há mais de 20 anos, foi pioneiro na definição de microplásticos num artigo seminal sobre o tema, intitulado Perdido no mar: para onde foi todo o plástico? e publicado na revista Science em 2004. Este novo estudo vem assinalar duas décadas de investigação científica sobre microplásticos.
Numa nota de imprensa, os autores defendem que a legislação existente nos diferentes países, por si só, é insuficiente para combater todas as formas de detritos de plástico (e os fragmentos associados). Nesse sentido, afirmam, o Tratado das Nações Unidas sobre a Poluição Plástica oferece uma “oportunidade tangível” para uma acção internacional concertada.
Para que seja um tratado eficaz, contudo, os países signatários têm de “comprometer-se com uma redução global da produção de plástico, juntamente com medidas para reduzir a emissão e a libertação de partículas microplásticas ao longo de todo o ciclo de vida dos plásticos”. Sem este pacto global, acrescentam os investigadores, poderá haver “um elevado risco de danos ambientais irreversíveis”.
Existem ainda diferentes estudos que sugerem que os microplásticos podem afectar a saúde humana. Fragmentos minúsculos deste material fóssil já foram encontrados no leite materno, na corrente sanguínea, nos pulmões e em outros órgãos do corpo humano.
Por um tratado eficaz
A quinta e última ronda negocial do Tratado dos Plásticos deverá decorrer em Busan, na Coreia do Sul, a 25 de Novembro. Em cima da mesa deverão estar temas como a identificação de substâncias químicas perigosas presentes nos produtos de plástico, o redesenho das embalagens e métodos de financiamento das medidas para combater a poluição do plástico. A imposição de limites à produção de plástico, contudo, continua a ser um assunto evitado.
Países produtores de petróleo – a matéria-prima dos plásticos – tendem a opor-se à ideia de reduzir a produção de materiais plásticos. O mesmo acontece com nações cujo sector da indústria petroquímica é pujante e que, por isso, vêem com maus olhos uma medida que prejudica os interesses económicos nacionais.
Co-coordenador da Coligação de Cientistas para um Tratado sobre Plásticos Eficaz, Richard Thompson frisa que o seu papel não é o de activista ambiental, mas sim o de cientista que tem como missão apresentar dados científicos que possam orientar as melhores políticas ambientais “de uma forma neutra”, sem interesses nacionais ou comerciais.
“Após vinte anos de trabalho nesta área, é claro que acho importante um tratado que seja ambicioso. Mas, ao mesmo tempo, há aqui aquela máxima ‘o perfeito pode ser inimigo do bom’. Se realmente não pudermos chegar a um documento perfeito, que tenhamos então um bom tratado, caso contrário não fazemos qualquer progresso nesta matéria – é assim que a diplomacia funciona”, explica Richard Thompson.
Pressão da indústria petroquímica
As negociações do Tratado das Nações Unidas têm sido pontuadas por lobbies da indústria dos plásticos. Há cientistas que relatam ser alvo de pressão. Bethanie Carney Almroth, especialista em ecotoxicologia da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, afirmou à agência Associated Press que já foi abordada por um lobbyista aos gritos.
Nessa ocasião, a cientista teve oportunidade de desmontar afirmações infundadas, como a de que não há dados suficientes acerca dos microplásticos. “Já foram publicados mais de 21 mil estudos sobre poluição por micro e nanoplásticos”, afirmou a investigadora, citada pela agência norte-americana.
A paisagem à volta da redução global dos plásticos parece, à luz desses relatos, ser tudo menos auspiciosa. Richard Thompson, contudo, garante que vê o copo meio cheio. Ao contrário da luta contra o tabaco, em que não é possível falar num uso seguro desta substância cancerígena e aditiva, o professor britânico lembra que existem diferentes formas seguras de utilização do plástico – como é o caso de dispositivos médicos ou de segurança.
“O plástico trouxe benefícios sociais. Não se trata aqui de banir o plástico, mas sim de reduzir a sua produção e garantir que aquele que é produzido tem fins essenciais e é usado de forma responsável” conclui o investigador britânico.
Uma das maiores preocupações do cientista britânico é a adopção de materiais alternativos sem testes ou estudos prévios que garantam que tais substitutos são, de facto, boas soluções. O professor dá como exemplo dispositivos que prometem remover resíduos dos rios, vendidos a autarquias locais no Reino Unido, que acabam por reter e sufocar animais aquáticos juntamente com os plásticos recolhidos. Ou ainda produtos anunciados como degradáveis – mas que só o são em condições muito específicas – que fazem com que o consumidor sinta que inexista ali o problema da poluição plástica.
“Vejo algumas respostas da parte da indústria perante a poluição plástica que, de algum modo, constituem quase novas oportunidades de negócio. Aqui não se trata de substituir um produto de utilização única por outro diferente, mas que não é necessariamente melhor. Nós vamos precisar aqui da ciência para nos guiar”, alerta Richard Thompson.
E na União Europeia?
Susana Fonseca, dirigente da Zero e investigadora na área da sustentabilidade, afirmou ao PÚBLICO que este artigo da Science vem reafirmar o que há muito os ambientalistas têm defendido. A ciência existente é robusta, o que falta agora é uma acção política com o mesmo vigor.
“Este estudo representa um alerta importante por parte da comunidade científica. Resta saber se quem tem poder de decisão está atento e receptivo ao que a ciência nos está a comunicar de forma inequívoca. Até agora, não nos parece que seja esse o caso”, diz Susana Fonseca, que não esteve envolvida no estudo.
A ambientalista recorda que a União Europeia aprovou, em 2023, uma restrição relativa aos microplásticos intencionalmente adicionados a produtos, como por exemplo cosméticos, detergentes ou pavimentos sintéticos de zonas desportivas. “Contudo, os prazos de implementação são muito alargados (chegam aos 12 anos para algumas categorias de produtos) o que, em nosso entender e face ao que o presente estudo conclui, não é aceitável”, argumenta Susana Fonseca.
Susana Fonseca recorda que ainda falta trabalhar a parte mais complexa da equação, ou seja, os microplásticos não intencionalmente adicionados – como os pellets, os pneus e os têxteis. “Embora o estudo refira a necessidade de se travar a entrada de microplásticos no ambiente, o desafio que temos em mãos é imenso e muito dificilmente se conseguirá uma redução muito significativa a curto prazo. Daí ser incompreensível os prazos alargados concedidos à utilização de microplásticos intencionalmente adicionados, onde é mais fácil intervir”, diz a dirigente da Zero.
O artigo de revisão publicado esta quinta-feira na Science abrange não só questões ligadas ao plástico em si, e ao impacto deste material fóssil nos ecossistemas marinhos, mas também aspectos ligados à política global, saúde humana, sustentabilidade e psicologia ambiental. As áreas científicas dos co-autores espelham esta diversidade de caminhos necessários para lidar com a poluição plástica social, politica e economicamente.
“A poluição plástica é totalmente causada por acções humanas. É por isso que precisamos de investigação sobre as percepções dos riscos e benefícios do plástico, bem como sobre outros factores de apoio e mudança política, integrando uma perspectiva de ciências sociais”, conclui a co-autora Sabine Pahl, professora de Psicologia Urbana e Ambiental na Universidade de Viena, na Áustria.