As mangueiras de sempre

No fundo da rua, ouvem-se gritos. Uma criança grita: – Bruno, a casa da avó está a arder! Somos o país que construímos. Somos o país que queremos.

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As chamas ameaçam a Capela do Senhor dos Aflitos. Aflitos, homens e mulheres entrelaçados em mangueiras e baldes combatem os vários focos de incêndio. As casas estão em perigo e os soldados da paz não comparecem. Na telefonia de uma casa modesta, a voz do presidente da Câmara Municipal de Albergaria-a-Velha reclama por mais meios. O assobiar do vento e o estalar dos eucaliptos abafam o seu desespero. Os gritos vêm de várias direcções e os pulmões quase vão à falência entupidos com fumo e partículas negras. São 9h30 da manhã, mas no céu é de noite.

Um homem chora. Uma mulher conduz um tractor. Há quem derrube portões. Há também quem regue o milho acabado de apanhar. Há quem desespere porque não tem água. Há quem dê pontapés nos baldes que se romperam. Há quem se sente na soleira da porta a olhar. Há torres de lenha para o Inverno. Há terras abandonadas transformadas em silvados. Há botijas de gás, relva sintética, palmeiras, casas devolutas, carros e charruas, santos e altares. Há anos de vidas construídas a pulso e a suor. Parece que tudo vai acabar.

A casa cor de salmão acabou de ser restaurada. A casa cor de salmão acabou de ser destruída. Um casal jovem. Ele ainda com a roupa de trabalho. Parece ser soldador. Ela só pedia ajuda. E todos ajudaram. A casa cor de salmão, a casa tipo tropical, a casa pequena do mecânico de motorizadas, a casa da senhora mais velha da rua e todas as outras. Era um corrupio de novos e velhos a tentarem dar o seu melhor. Há amigos e vizinhos que se odeiam. Mas naquela hora todos se abraçaram. Lutaram até à exaustão.

Em cada telha, em cada janela, em cada tacho, em cada colchão, em cada livro, em cada crucifixo, em cada jóia, em cada árvore destruída pelas chamas, em cada vida, em todos nós, estão anos de políticas erradas. De "bazucas" e propagandas.

No fundo da rua, ouvem-se gritos. Uma criança grita:

– Bruno, a casa da avó está a arder!

Somos o país que construímos. Somos o país que queremos.

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