Nasce um bebé, morre um império

Sempre que posso, converso com pessoas que viveram na pele o império e o seu epílogo. Ouço as histórias, conto-as de novo. Numa casinha de Campolide, uma mulher extraordinária contou-me isto.

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Bandeira portuguesa arriada numa das ex-colónias Alfredo Cunha
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Foi em 75. Estávamos no Lobito, fugidos da Quibala, quando a FNLA e a UNITA se desentenderam. No Lobito, no Novo Redondo, em Benguela, desentenderam-se. E começou a haver combates ali. Deixou de ser possível ir para Luanda. Os sul-africanos, que estavam a favor da FNLA, pegaram em nós e levaram-nos quando bateram em retirada. Fugimos com os sul-africanos até à fronteira sul de Angola, e daí fomos de comboio até à Namíbia. Apanhámos um avião da Força Aérea, um avião português que foi buscar gente à Namíbia. Nós éramos cidadãos portugueses. Negros e brancos. Eu tenho dupla nacionalidade. Ainda tenho aí o meu documento de identificação de antes da independência. E tenho dupla nacionalidade, porque o meu avô paterno era português, era branco, e eu era casada com um português. O meu bisavô materno também era branco. Porque se assim não fosse... não tinha.

Era um avião normal. Sei que era um 747. Mas quem estava a pilotar aquilo eram militares. Tanto é que não havia hospedeiras. Isso eu lembro-me. Só havia os assistentes de bordo, que eram militares. Sim, eram militares fardados. Estávamos numa espécie de campo de concentração, com arame farpado à volta, lá na Namíbia, e eles anunciavam todos os dias: “As mulheres grávidas no fim do tempo devem dirigir-se ao posto médico”, mas eu disse ao Francisco: “Não vou! Não vou, porque isto aqui até nem tem hospital. Vão ter que me mandar para a África do Sul.” Na África do Sul ainda havia o apartheid. “Onde é que nos vão pôr, a mim e a ti? Tu és branco, eu sou clarinha, mas vê-se logo que não sou branca, como é que vamos fazer isso? Como é que vai ser? Eu vou-me perder de ti.” E então disse: “Não vou.”

No dia do embarque, contaram-nos “Um, dois, três, ...” O funcionário olhou para a minha barriga e pensou: “Bem, nós temos anunciado que as grávidas têm de se apresentar no posto médico... Se esta ainda aqui está, é porque pode embarcar.” O Francisco tinha uma malita pequena com roupas para o bebé. E eu lembro-me de o funcionário dizer: “Essa mala não pode ir consigo, tem de ir para o porão.” “Não vai para o porão, porque é a roupa do meu filho.” “Então, mas o seu filho ainda não nasceu.” “Não me interessa, não quero saber...” Aquilo foi uma guerra, o Francisco era aqui do Norte de Portugal, era refilão até dizer chega. E diz o senhor: “Olhe, leve lá a mala, e Deus queira que seja um rapaz.” E levou mesmo.

Eu entrei para o avião, e deve ter sido dos nervos, não sei. Só sei que, conforme me sentei, começaram umas dores horríveis. Pensei: “Não vou dizer nada, senão tiram-me do avião.” Mas eram dores mesmo fortes... Porque eu sei que um parto começa com aquelas moinhas, e as dores vão aumentando. Já tinha tido uma menina, aliás, portanto já sabia. Tinha 18 anos, mas já era mãe. Daquela vez foi diferente, sentei-me, senti logo umas dores fortíssimas... “Ai, meu Deus. O que é que eu hei-de fazer? Não digo nada. Vou deixar isto levantar voo, e só depois é que digo.”

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Aviões da TAP e de outras companhias que participaram na retirada dos portugueses de Angola Arquivo David Ferreira

Dores de parto

Quando o avião levantou voo, já não aguentava mais. Como entrámos todos ao monte, não fiquei ao pé do Francisco. Fiquei ao pé de um casal e a filha. Olhei para trás e vi-o a dormir com uns óculos amarelos que ele tinha, de boca aberta, a dormir a sono solto. “Eu não estou a acreditar...” Chamei uma prima minha, porque eu vinha com os meus tios, com as minhas primas. “Melinha, anda cá.” “Tenho medo de cair.” “Não, não cais, não tenhas medo. Anda, anda cá.” “O que é que foi?” “Diz à tia”, que era a mãe dela, “que eu estou cheia de dores.” Então a minha tia veio ter comigo. “Dores de quê?” “Dores de parto.” “Ai, eu não acredito nisto. Tu vais ter o bebé aqui?” “Não sei, tia, só sei que me dói muito.”

Então lá comunicaram que estava ali uma parturiente, levaram-me para ao pé dos militares, para a parte da frente do avião, perto da cabina. Descalçaram-me, deram-me um chá, mas eu só dizia: “Mas eu não quero chá. Eu não quero chá.” Pensaram que eu estivesse nervosa, por nunca ter andado de avião. Porque as dores começaram ao meio-dia, e a um quarto para as quatro o bebé nasceu. Foi assim uma coisa rápida. Entretanto, a certa altura eu disse: “Olhem, eu vou ter o bebé agora. Arranjem-me um lugar para eu me deitar. Eu quero ter o bebé.” Levaram-me então para a parte de trás. Mandaram levantar as pessoas, porque aquilo eram filas de três lugares. Meteram almofadas, isso lembro-me, meteram almofadas ali, e tal, e eu deitei-me. Se havia um médico a bordo? Não havia ninguém. Nem enfermeiro. Ninguém. Havia uma passageira. Perguntaram se alguém percebia de partos. Uma portuguesa levantou-se e veio ter comigo. Não era enfermeira, nada. Era uma curiosa que percebia de partos. Se fosse preciso alguma cesariana, ou alguma coisa do género, eu bem que podia ter morrido.

Na mala pequenita tinha uma camisa de dormir. Tiraram-me a roupa e lá me vestiram aquela camisa de dormir. Deitei-me e de repente disse: “Ai! Eu quero ir à casa de banho!” Lembro-me que me empurraram para trás, não me deixaram levantar, porque era o bebé a sair. A minha tia dizia-me assim: “Olha, o avião está cheio de gente. Tu não vais gritar, não vais dizer nada, está bem?” “Está.” Os passageiros ouviram o bebé a chorar e disseram: “Isto não é normal, que idade é que ela tem?” “Tem 18 anos.” “Dezoito anos, com esta coragem? Não ouvimos um ai.”

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Voo Luanda-Lisboa, Outubro de 1975 Alfredo Cunha

Tive o meu filho caladinha, sem soltar um grito, eu que sempre fui tão rebelde. Só era muito submissa com a minha mãe, isso sim. A minha mãe podia-me bater, podia fazer tudo o que quisesse, por mim estava bem. Agora outras pessoas não. Nem pensar. Nem com maridos, nada. O Francisco, com quem me casei com 16 anos, da primeira vez que me deu um estalo, levou logo dois. Logo. Disse-lhe: “O meu pai nunca me tocou.” E é verdade, nunca me pôs a mão. “Agora, tu vens de onde para me vires aqui bater?” Isso nunca admiti, essas coisas. A minha mãe dizia: “Tu não podes ser assim, ficas sem marido.” E eu: “Não faz mal. Arranjo outro.”

Qual bebé?

O bebé nasceu, um rapaz enorme, com quatro quilos e mais setecentos e cinquenta gramas. Quem é que cortou o cordão umbilical? Foi essa senhora. Com quê? Lá no avião havia um estojo de primeiros socorros, ela cortou o cordão, fez tudo direitinho, atou a barriguinha do bebé. Como tínhamos roupa, foram a uma das casas de banho, deram um banhito ao bebé para ficar mais limpinho, vestiram-lhe a roupinha... eu sei que olhei para o meu bebé, era enorme, e depois andou de colo em colo lá pelo avião todo. Toda a gente pegou no bebé. Quando chegámos aqui a Lisboa, era de madrugada e já estava uma ambulância na pista, à espera.

Fui para a Maternidade Alfredo da Costa, que eu não gosto daquela maternidade até hoje. Cheguei lá, e acho que não informaram que eu já tinha tido o bebé, porque me começaram a preparar para o parto. E eu pensei: “O que é que esta gente está a fazer?” Passaram-me para uma cama e iam levar a maca dali. “Mas o meu bebé está aí!” “Qual bebé?” “Mas eu já tive o bebé!” “Ah, pois está...” Nem tinham visto o bebé, olhe, aquilo foi uma confusão. Foram acordar o médico para me coser. O médico chegou estremunhado, a refilar: “Ora, ponha-se lá, abra lá as pernas.” E eu: “Não me vão dar anestesia?” “Não.” “Mas eu não tenho dores, eu já tive o bebé há mais de doze horas. Portanto, aqui ninguém vai coser nada.” “Ai não?” “Não, não. Ninguém toca aqui. Não vão coser. Eu não deixo.” “Não deixa?” “Não, não deixo.” A enfermeira refilou, o médico disse: “Não quer, não quer.” E eu: “Não quero mesmo.” E ele foi-se embora.

Às oito da manhã, chegou outra equipa. Fizeram as rondas aos quartos. “Quem foi a senhora que chegou ontem e não aceitou ser cosida?” “Eu.” “Porquê?” “Olhe, eu não sou nenhum animal. Eu não tinha dores e iam-me coser assim, sem anestesia? Não quis.” “Então vamos lá a ver como é que está. Oh, isso também só era preciso um ponto, não sei para que é que eles queriam tanto coser.” Nunca me calei, pela vida fora. Sempre refilei. Vinha da guerra, estava pronta para guerrear.

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Retornados de África nas imediações do aeroporto de Lisboa em Junho de 1975 ALFREDO CUNHA

Passei lá o dia inteiro. Pedia água, tinha muita sede, mas elas nada de me darem água. Só sei que o Francisco apareceu lá no hospital quando deviam ser umas oito da noite. Eu disse: “Ó Francisco, olha, eu tenho muita sede.” “Porquê?” “Porque elas não me dão água.” “Quem?” “As enfermeiras.” “Não te dão água?” Ele devia ter andado a beber não sei onde... era do Norte, muito disparatado, disse tantas asneiras naquele hospital... chamou-lhes racistas, chamou-lhes tudo, “e vou levar a minha mulher e o meu filho agora!” Era de noite, eu tinha chegado na madrugada anterior. “O senhor não pode fazer isso.” “Posso! A mulher é minha, o filho é meu, posso!” “Então tem de assinar o termo de responsabilidade.” “Onde é que está o papel?” Ele não dizia o papel, dizia muitas asneiras antes de dizer “o papel”. Deram-lhe o papel, ele assinou e tirou-me de lá.

Fomos para um hotel, eu ainda com sangue nos pés, lembro-me de andar pela rua com sangue nos pés e nas pernas, à luz dos faróis dos carros. Não tinha sapatos, porque os meus tios tinham levado as minhas coisas, e eu disse ao Francisco: “Não tenho sapatos.” E ele: “Leva os chinelos do hospital!” Lembro-me que tive muito frio, porque isto foi em Março. Antigamente, os invernos eram rigorosos, agora não. Nunca tinha vindo a Portugal. O frio entranhava-se nos ossos, um frio terrível. E eu agasalhava bem o bebé, pensei: “Se eu morrer com este frio, ao menos o bebé fica.”

E foi assim que começou a minha nova vida, aqui em Portugal.


Agosto de 2024


Escritor e tradutor literário

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